sexta-feira, 9 de junho de 2023

[COLETIVO DE VÍTIMAS CES-UC/PT] 3a CARTA ABERTA

                                                                                                                                                                                                    [REPLICANDO A ÍNTEGRA AQUI] 


Terceira carta do Coletivo de Vítimas sobre os recentes posicionamentos de Boaventura de Sousa Santos

 

SEM ASSUMIR A RESPONSABILIDADE POR ATOS CONCRETOS DE ABUSO COMETIDOS, NÃO HÁ AUTOCRÍTICA

 

Apresentamo-nos como um Coletivo de Mulheres que sofreu diferentes tipos de violência, resultante do padrão de abuso de poder naturalizado nas equipas de trabalho lideradas por Boaventura de Sousa Santos e percebido como inevitável pelas pessoas que ocuparam lugares de autoridade no CES durante muitos anos. Abaixo, juntamos a nossa carta inicial. Desde que começámos a partilha das nossas reflexões, o número de pessoas aumentou. Temos estado em contacto com outras mulheres, que viveram histórias parecidas com a nossa. As situações de abuso experienciadas não se limitam a momentos inconvenientes promovidos por um homem incapaz de entender que o mundo mudou. É muito difícil acreditar que um sociólogo profissional, internacionalmente considerado um dos maiores intelectuais de esquerda, não consiga entender as mudanças da sociedade e adaptar-se a elas. Mesmo com todas as condições e o poder que Boaventura teve sempre à disposição, mesmo que seus estudos tenham sempre chamado a atenção para o patriarcado como forma de opressão, Boaventura ignorou o que escreveu e não se adequou às exigências de um mundo menos opressivo. Seu comportamento com as equipas, colegas de trabalho, estudantes e orientandas não foi reflexo cultural dos tempos, mas uma escolha consciente.

As nossas experiências permitem-nos afirmar que as contradições evidentes entre a teoria de Boaventura de Sousa Santos e as relações de poder normalizadas na sua cultura de trabalho nunca puderam ser problematizadas, porque manter as hierarquias, com seus padrões de exploração e abuso, garantia-lhe vantagens evidentes de que não estava disposto a abdicar. Uma pessoa disposta a fazer uma autocrítica deve, desde logo, reconhecer que, em decorrência das relações desiguais que promoveu, consciente ou inconscientemente, recebeu vantagens. No nosso grupo, há mulheres que acumularam traumas no contexto da relação laboral com Boaventura de Sousa Santos, com sério impacto nas suas carreiras. O primeiro conjunto de perguntas que colocamos é: o Boaventura que agora faz uma autocrítica admite que, no seio da cultura de relações desiguais que promoveu, foi altamente privilegiado? Que privilégios reconhece? Que prejuízos e danos causou às mulheres com quem teve uma relação laboral ou de privilégio numa hierarquia académica? Uma autocrítica genérica não recompõe danos, nem supera desigualdades. É preciso assumir responsabilidades e fazê-lo de forma concreta.

O nosso Coletivo está focado em pressionar a constituição de uma comissão centrada na proteção das vítimas e não na defesa dos agressores. Esse é o nosso objetivo. Não queremos apelar ao cancelamento, nem o desejamos, queremos a apuração íntegra dos fatos, o respeito pelos direitos das vítimas e pelas suas histórias de dor e sofrimento. Queremos justiça! A necessária investigação dos casos tem que assegurar um espaço em que as vítimas possam testemunhar sem medo de retaliações. Sabemos que o poder está desigualmente distribuído e é por isso que muitas mulheres são silenciadas. É imprescindível que a Comissão seja instaurada e que a absoluta independência da Comissão em relação ao CES seja garantida. Desde a primeira carta que endereçamos ao CES, muito embora tenhamos obtido uma resposta célere e indicando preocupação em garantir os direitos das vítimas, nada se alterou. O que temos visto é Boaventura a usar o poder que tem para garantir tempo de antena e veicular à exaustão a sua versão dos factos, enquanto nós aguardamos e torcemos para que os procedimentos do CES sejam escorreitos e garantam que os nossos direitos serão respeitados e que seremos acolhidas num contexto seguro para apresentarmos as nossas histórias, juntamente com as evidências que estamos reunindo. É, por isso, preocupante que as notícias que chegam ao nosso conhecimento sobre a Comissão venham da comunicação social e nos gerem insegurança sobre como de facto irá funcionar. Em dado momento, há referência de que a Comissão será composta por um elemento do CES e duas pessoas externas. Em outro momento, há referência de que a Comissão será totalmente independente. O nosso segundo conjunto de perguntas é: Quando serão conhecidos do público os termos de funcionamento da Comissão (seu mandato, garantia de autonomia e funcionamento independente, objetivos, regras éticas que está obrigada a cumprir, regras de sigilo que irá seguir, regras a serem seguidas pelo CES para seleção das pessoas)? O CES pretende apresentar um conjunto mínimo de compromissos públicos sobre a Comissão e seu funcionamento e algum cronograma que assegure uma seleção criteriosa de profissionais e garanta quando iniciarão e como serão conduzidos os trabalhos?

A resposta que Boaventura de Sousa Santos fez circular em reação às acusações da ativista indígena Mapuche Moira Millan não nos convenceu. Não deixa de ser surpreendente ver como Boaventura, um intelectual ativista de causas progressistas, entre elas o feminismo, seguiu à risca as estratégias de desmoralização das vítimas e o argumento da falta de denúncia quando as violências ocorreram no contexto de uma estrutura em que ele detinha um altíssimo poder hierárquico e alta influência sobre a carreira e o universo de trabalho ou ativismo das suas vítimas. Respondemos à carta no dia 27 de abril, ainda que tenha tido pouca visibilidade, sobretudo nos meios de comunicação social portugueses (link: https://sol.sapo.pt/artigo/797956/boaventura-sousa-santos-coletivo-de-mulheres-vitimas-de-assedio-responde-a-argumentos-de-professor). 

O último texto que Boaventura de Sousa Santos pôs em circulação, contrariando o próprio título, não é uma autocrítica. Aqui, mais uma vez, Boaventura segue a cartilha: fazer seguir às tentativas de desmoralização das vítimas, uma autocrítica absolutamente protocolar que, no fundo, é mais um documento para tentar convencer o público da alegada injustiça que sofre e que não é responsável pelos atos de que está acusado, apesar de existir um número cada vez maior de mulheres corroborando as informações. A título ilustrativo do padrão que Boaventura usa nas suas respostas, reproduzimos alguns trechos da declaração dada por Harvey Weinstein, em resposta às acusações de assédio sexual: I came of age in the 60's and 70's, when all the rules about behavior and workplaces were different. That was the culture then. I have since learned it's not an excuse, in the office - or out of it. To anyone. I realized some time ago that I needed to be a better person and my interactions with the people I work with have changed. I appreciate the way I've behaved with colleagues in the past has caused a lot of pain, and I sincerely apologize for it.

Em vez de uma análise do seu próprio privilégio, Boaventura apresenta uma leitura superficial e genérica do panorama social que resulta das transformações que ocorreram nas sociedades modernas em resultado das lutas feministas e dos desafios que temos hoje. No seu discurso, argumenta que muito do que não é aceitável hoje, era aceitável na época da qual veio. Acontece que, como assume, os direitos humanos, nomeadamente os direitos das mulheres, foram centrais na sociologia que desenvolveu e nos compromissos que assumiu com os movimentos sociais. É difícil aceitar como desculpa a ignorância ou a falta de noção, depois de tanto livro escrito; tanta palestra, tanta aula, tanta oficina, tanto fórum sobre o heteropatriarcado. O texto acaba por provar como Boaventura vem aprendendo seletivamente, e de acordo com seus interesses, as lições das lutas sociais feministas e por direitos humanos. Não aprendeu, por exemplo, o que significa responsabilização. Uma autocrítica vazia de responsabilização é apenas mais um passo de quem tem poder para controlar a narrativa. O movimento de direitos humanos, há anos, mostra que responsabilização significa assumir concretamente os atos cometidos, reconhecer a violência dos mesmos e os danos causados e reparar as vítimas. O terceiro conjunto de perguntas é novamente dirigido a Boaventura: Os atos inapropriados, que atribui à cultura, e não a si mesmo, foram cometidos contra quem? Dizem respeito a que tipo de situações: assédio moral ou assédio sexual ou ambos? Que medidas Boaventura tomou ou pretende tomar para reparar as vítimas dos seus atos lesivos? Ou está a falar apenas de atos inapropriados inofensivos que não trouxeram danos ou sofrimento a ninguém? Se não trouxeram danos ou sofrimento, porquê a necessidade de fazer a autocrítica? 

As respostas precisam ser concretas. Temos nossas histórias para exigir verdadeira responsabilização. Sabemos que o que sofremos não foram situações  inofensivas de um professor que ficou parado no tempo e não se apercebeu que o mundo andou. Estamos falando de um padrão sistemático de abusos que foi reproduzido com diferentes mulheres, em situações diversas. O último texto de Boaventura contradiz sua própria intenção, não avança um milímetro no reconhecimento das lutas feministas e dos direitos das mulheres, embora nele Boaventura se sinta surpreendentemente à vontade para ditar regras sobre como os procedimentos devem funcionar nos casos de assédio em que nunca foi vítima.

Sabemos que Boaventura conhece com profundidade como funcionam as relações de poder e as formas de dominação na sociedade. Compreende tão bem como funciona o patriarcado, que soube sempre colocá-lo ao seu serviço e de várias formas. Compreende tão bem a força das lutas sociais, que se valeu de mulheres dispostas a sacrificarem-se, porque denunciá-lo seria sempre aproveitado para detonar todas lutas que defendia publicamente e que são verdadeiramente importantes para nós. 

Mesmo que a desculpa da ignorância pudesse ser aceitável, lamentar o desconforto que causou nas vítimas é, no mínimo, insuficiente e é, do nosso ponto de vista, ofensivo. Não queremos falar do desconforto com o qual aprendemos desde sempre a lidar, que cansa mas não nos derrota. Queremos falar de um padrão de abuso normalizado, que ficou demasiado evidente para o podermos ignorar. Queremos falar de traumas silenciados; de carreiras interrompidas, estagnadas ou altamente sacrificadas; de perseguições resultantes de uma distribuição arbitrária de poder que o servia. Não pode existir justiça sem verdade sobre o que aconteceu, não pode haver absolvição sem qualquer esforço de reparação dos danos.  

Enquanto o CES não constituir a prometida comissão de investigação é Boaventura quem fica a ganhar, porque tem poder para controlar a narrativa. Enquanto ele prepara a sua comunicação de crise, sem reconhecer uma única falha concreta, as nossas carreiras e nossas vidas continuam abaladas, sem um fim à vista. A desigualdade continua a pesar sobre nós e as nossas cartas não são publicadas à mesma velocidade e no mesmo número de meios de comunicação social. Continuamos aqui a reviver os traumas e contamos apenas umas com as outras. A nossa cura ainda está por fazer.

 

Em 6 de junho de 2023.

 

 

Daniela Felix

Rep. Legal do Coletivo de Vítimas

Advogada Feminista 



(anexo)


NÃO É DIFAMAÇÃO, NEM É VINGANÇA. SEMPRE FOI ASSÉDIO: CARTA ABERTA AO CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Primeira carta do Coletivo de Vítimas de Boaventura de Sousa Santos 

17 de abril de 2023

 


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