sexta-feira, 9 de junho de 2023

[COLETIVO DE VÍTIMAS CES-UC/PT] 2a CARTA ABERTA

 [REPLICANDO A ÍNTEGRA AQUI]

2a. CARTA ABERTA DO COLETIVO DE MULHERES VÍTIMAS DE ASSÉDIOS, EM RESPOSTA AOS ARGUMENTOS APRESENTADOS POR BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS EM SUA DEFESA PÚBLICA


EXPOR A VULNERABILIDADE DE QUEM ACUSA NÃO CONSTITUI PROVA DE INOCÊNCIA.

 

Apresentamo-nos como um coletivo de mulheres que sofreu diferentes tipos de violência, resultante do padrão de abuso de poder naturalizado nas equipes de trabalho lideradas por Boaventura de Sousa Santos e percebido como inevitável pelas pessoas que ocuparam lugares de autoridade no CES durante muitos anos [anexamos a nossa Carta inicial].

O nosso coletivo está focado em pressionar a constituição de uma comissão centrada na proteção das vítimas e não na defesa dos agressores. A necessária investigação dos casos tem que assegurar um espaço em que as vítimas possam testemunhar sem medo de retaliações. Sabemos que o poder está desigualmente distribuído e é por isso que muitas mulheres são silenciadas. 

A resposta que Boaventura de Sousa Santos fez circular em reação às acusações da ativista indígena Mapuche Moira Millan (a que a própria também já respondeu - https://www.instagram.com/p/Crbt78YPTZJ/?img_index=1) vem ao encontro de parte das nossas preocupações. Esclarecemos, desde já, que não conhecemos e, até ao momento, nunca contatamos a ativista em questão. Levamos, no entanto, muito a sério a sua história.

Se toda a crítica tem direito a resposta e toda a acusação tem direito a defesa, é preciso romper com o pacto acadêmico de produção de verdade assente em hierarquias que atribuem ao lado mais forte o poder de definir o que é racional e o que é irracional, o que é provável e o que é improvável, o que é verdade e o que é mentira e quais são as perguntas que interessa fazer e sobretudo responder.

Na narrativa que assume como prova de inocência, Boaventura usa uma lógica de produção de verdade que reproduz problemas estruturais da academia: o professor catedrático escolhe a quem quer responder e ao que quer responder; define os termos do debate; desclassifica a vítima e assume que a sua palavra tem mais valor. 

Na cartilha de defesa dos abusadores encontra-se o recurso a evidências da cordialidade ou até da simpatia das mulheres após os comportamentos abusivos traumáticos que relatam. Ainda que toda a troca de e-mails que alegadamente prova uma continuidade nas relações entre Moira Millá e Boaventura fosse verdadeira (o que Moira Millán desmente), isso não produz prova de inexistência de abuso. 

É comum as mulheres sofrerem abuso e ainda se verem na obrigação de ser bem-educadas com o agressor. Todas sabemos, porque também fomos educadas a silenciar o que sentimos para evitar o desconforto geral, seja no jantar de Natal, seja na reunião de trabalho. Falhar essa regra, resulta em classificações bem conhecidas pelo patriarcado e pelas mulheres que o contestam: insubordinada, conflituosa, difícil, emocional, histérica, louca, desesperada, egoísta. 

São tantas as razões possíveis para manter a cordialidade, que só podemos dar exemplos: abusadores são manipuladores e podem fazer passar por insensibilidade e falta de empatia aquilo que foi uma rejeição do abuso; a culpa que as mulheres historicamente carregam faz com que muitas vezes questionem o que disseram, o que vestiram, como se movimentaram antes de conseguirem chamar violência ao que viveram; o poder de difamação do abusador é exponencialmente superior ao poder da vítima para denunciar; abusadores podem ser líderes de projetos e causas que as vítimas veem como mais importante do que a sua condição individual de sofrimento. 

No final da sua resposta, Boaventura Sousa Santos afirma “não posso aceitar que me façam acusações falsas como os factos bem demonstram”, mas os fatos apresentados por ele só podem ser entendidos como prova de inocência por quem não tenha qualquer ideia do que é sofrer assédio numa sociedade que soube sempre proteger melhor os agressores do que as vítimas. 

“Gostaria de não ter que avançar por meios jurídicos para resolver esta questão” é o tipo de formulação que serve em tantas situações e tão bem reconhecemos: a ameaça em tom suave, condescendente e patriarcal. Moira sabe que se não desistir, a guerra vai ser dura e Boaventura espera que a ameaça seja suficiente. Habituou-se na vida a que assim fosse. 

Para começar, Boaventura assume que as pichações que surgiram nas paredes de Coimbra com acusações de violência sexual se referiam à agressão sobre Moira. Todas sabemos que não é verdade. O caso mais conhecido era o abuso sexual exercido sobre a atual deputada brasileira Isabella Gonçalves, na altura uma jovem estudante de doutoramento no CES. Boaventura passa assim uma borracha sobre esse caso, como se nunca tivesse existido e não houvesse uma denúncia real. 

Sabemos que existiu. Mas Boaventura está habituado a definir quais são as perguntas e os casos relevantes, assim como as interlocutoras válidas e as inválidas, porque é esse o poder que a academia atribuiu a um professor catedrático e é esse sistema de validação que tem que ser questionado. 

Boaventura assume como prova de inexistência de assédio o fato de a sua casa não ter um sistema de segurança, como Moira afirma. Acontece que, em Portugal, é comum os prédios, que raramente têm porteiros, serem protegidos por uma porta comum de acesso aos moradores, que pode ser aberta por fora com recurso a um código ou uma chave. Para sair, nada disso é necessário, mas, para quem perceba alguma coisa de interculturalidade ou simplesmente já se tenha sentido insegura em lugares onde não conhece as regras, é fácil compreender como aquelas portas possam ser entendidas como sistema de segurança para quem vem de um lugar muito diferente. 

Insistimos que todas estas acusações devem ser investigadas e sabemos que os acusados têm direito a defesa, mas essa não pode assentar nas mesmas regras que fizeram calar-nos tanto tempo. Os abusadores não podem escolher as perguntas a que respondem e não têm o direito de selecionar e (des)classificar as vítimas. 

Boaventura mostrou, ao procurar defender-se, que conhece bem as regras que protegem o patriarcado e que sabe usá-las. Não nos convenceu. Enviamos daqui uma mensagem de solidariedade à Moira Millán: nós acreditamos, porque nós reconhecemos o padrão. 

 

 

Por fim, recorda-se que o e-mail querocontarminhahistoriaem23@gmail.com segue à disposição a todas que foram afetadas pelas práticas abusivas de Boaventura de Sousa Santos e precisam de um espaço seguro para partilhar suas histórias.

 

Do Brasil para Portugal, 27 de abril de 2023.

 

 

Daniela Felix

Rep. Legal do Coletivo de Vítimas

Advogada Feminista 

Nenhum comentário: