quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Dissecando a “tolerância zero”


*Aproveito a oportunidade pra trazer o artigo de Loïc Wacquant que mencionei ontem.

 

Loïc Wacquant

A chamada “tolerância zero”, vulgata da segurança que se apresenta como um discurso científico que propõe implantar uma ação policial “racional”, não passa de uma fraude, decantada por políticos de esquerda e direita pelo mundo inteiro



A canonização do “direito à segurança” é o correlato do abandono do direito ao trabalho, vilipendiado pelo desemprego em massa e pelo emprego precário

Um pânico moral espalha-se através da Europa em torno da “violência urbana” e da “delinqüência dos jovens”, que ameaçariam a integridade das sociedades desenvolvidas e seriam punidos com penas severas. A encenação política da “segurança”, atualmente divulgada em sua estrita acepção criminal – desde que o próprio “crime” foi restrito apenas à delinqüência de rua, ou seja, em última instância, às torpezas das classes populares –, tem como função permitir aos dirigentes atuais, ou futuros, reafirmar a capacidade de ação do Estado no momento em que pregam unanimemente sua impotência em matéria econômica e social(1). A canonização do “direito à segurança” é o correlato do abandono do direito ao trabalho, inscrito na Constituição, mas vilipendiado pela continuidade do desemprego em massa e pelo aumento dos assalariados em regime precário. Estes negam qualquer segurança de vida aos que a ele estão condenados e que são a cada dia mais numerosos. 
Nos canais de televisão mais importantes, o jornal das 20 horas transformou-se em crônica das ocorrências policiais que subitamente são muito numerosas e ameaçam todo mundo: aqui, é o caso de um professor primário pedófilo; ali, uma criança assassinada; mais adiante, um ônibus urbano apedrejado. Os programas especiais se multiplicam no horário nobre, como o “Isto pode acontecer com você” de 13 de fevereiro último na TF1 que, no item da “violência escolar”, conta a história de um garoto que se suicidou depois de um roubo à mão armada no pátio de uma escola, caso absolutamente aberrante, mas rapidamente usado como paradigma, em função dos índices de audiência. As revistas semanais estão repletas de reportagens que revelam os “verdadeiros números”, os “fatos ocultos” e outros “relatórios explosivos” sobre a delinqüência, em que o sensacionalismo compete com o moralismo, sem esquecer de estabelecer, periodicamente, a assustadora cartografia de “bairros proibidos” e enumerar “conselhos práticos” indispensáveis para enfrentar os onipresentes e multiformes perigos decretados(2).

A ordem social pela força 
Por toda parte é repetido o pungente refrão sobre a inércia das autoridades, a imperícia da justiça e a indignação apavorada ou exaltada das pessoas comuns. O governo multiplica as medidas ostensivas de repressão – das quais mesmo seus membros menos argutos não ignoram a total ineficácia sobre os problemas de que deveriam tratar. Um exemplo é a compra excessivamente dispendiosa de um colete à prova de balas para cada policial francês, quando 97% deles nunca chega a entrar em contato com qualquer bandido armado durante toda a sua carreira e o número de policiais mortos em serviço tenha diminuído pela metade em dez anos. (grifo meu)
A oposição de direita não fica atrás e promete sobre todos os aspectos fazer a mesma coisa, porém mais depressa, mais intensamente e mais energicamente. Com exceção dos representantes da extrema-esquerda e dos Verdes, todos os candidatos a cargos eletivos promoveram a “segurança” ao grau de prioridade absoluta da atuação pública. E propõem apressadamente as mesmas soluções primitivas e punitivas: intensificação da atividade policial, concentração sobre os “jovens” (de origem operária e imigrante, claro), os “reincidentes” e os “focos” de criminosos da “periferia” (o que exclui comodamente a criminalidade do “colarinho branco” ou institucional), aceleração dos procedimentos judiciários, endurecimento das penas, extensão do recurso à detenção – inclusive para menores de idade – quando está amplamente comprovado que a reclusão é eminentemente geradora de criminalidade. Finalmente, para permitir tudo isso, reivindicam o aumento sem limites dos meios destinados à manutenção da ordem social pela força. Até o chefe de Estado(3), delinqüente por várias vezes reincidente e sem qualquer vestígio de pudor, ousa pedir “tolerância zero” contra infrações, ainda que leves, nos bairros desfavorecidos.

Política made in USA
Essa nova figura político-discursiva da “segurança” que, em todos os grandes países da Europa, reconcilia a direita mais reacionária com a esquerda governamental retira o essencial de sua força de imposição dessas duas potências simbólicas contemporâneas que são a ciência e os Estados Unidos da América do Norte – e melhor ainda, do cruzamento de ambas: a ciência norte-americana aplicada à realidade norte-americana. 
Da mesma forma que a visão neoliberal em economia se baseia em modelos de equilíbrio dinâmico construídos pela ciência econômica ortodoxa made in USA, país que detém um quase monopólio dos prêmios Nobel nessa disciplina, a atual vulgata da segurança apresenta-se sob a aparência de um discurso científico que quer pôr a “teoria criminológica” mais avançada a serviço de uma política decididamente “racional” e, portanto, ideologicamente neutra e em última instância indiscutível, uma vez que é orientada por puras considerações de eficácia e eficiência. Assim como a política de submissão ao mercado, ela provém diretamente dos Estados Unidos, transformados em sociedade-farol da humanidade, a única da história dotada de meios materiais e simbólicos capazes de converter suas particularidades históricas em ideal trans-histórico, e de fazê-lo acontecer, transformando a realidade à sua imagem por toda parte(4). Foi em Nova York, por exemplo, que os dirigentes políticos franceses (mas também britânicos, italianos, espanhóis e alemães), de direita como de esquerda, foram em peregrinação nestes últimos anos para marcar sua determinação recobrada de vencer a criminalidade de rua e para se iniciarem, com esse objetivo, nos conceitos e medidas implementados pelas autoridades norte-americanas(5). Apoiado na ciência e na política do crime control. testadas na América do Norte, o pensamento único sobre segurança apresenta-se sob a forma de um encadeamento de “mitos científicos” dos quais se torna urgente examinar a trama e dissecar as motivações.

O refrão repressivo catastrofista
A imprensa sensacionalista divulga, periodicamente, mapas de “bairros proibidos” e enumera “conselhos práticos” para enfrentar perigos onipresentes

1. Uma América do Norte “supercriminosa” hoje pacificada e superada pela França: segundo esse primeiro mito, os Estados Unidos estavam assolados, até há pouco tempo, por taxas astronômicas de criminalidade, mas teriam, graças a suas inovações policiais e penais, “resolvido” a equação do crime, a exemplo de Nova York. Ao mesmo tempo, as sociedades da velha Europa, por negligência, se teriam deixado apanhar pela espiral da “violência urbana”. Foi assim que Alain Bauer – diretor-presidente da Alain Bauer Associates, empresa de “consultoria em segurança” e, além de assessor de ministros socialistas, grão-mestre do Grande Oriente da França – anunciou com estardalhaço que, depois de fazer o “cruzamento histórico das curvas” entre os dois países em 2000, “a França é mais geradora de crimes que os Estados Unidos” (6). 
Difundida pela mídia institucional, essa “revelação” demonstra que, em matéria de insegurança, pode-se dizer tudo e qualquer coisa e ser levado a sério, desde que se entoe o refrão repressivo catastrofista da moda. Na realidade, foi estabelecido há uns dez anos, graças à International Crime Victimization Survey (ICVS) (7), que os Estados Unidos têm taxas de criminalidade absolutamente comuns, quando se medem em função da incidência da “vitimação” – e não a partir das estatísticas da criminalidade declarada às autoridades, cujos especialistas sabem que elas medem melhor a atividade da polícia que a dos delinqüentes. Com exceção, notável e explicável, dos homicídios, os índices norte-americanos são há muito tempo comparáveis e mesmo geralmente inferiores aos de muitas outras sociedades desenvolvidas. Em 1995, por exemplo, os Estados Unidos estavam em segundo lugar – depois da Grã-Bretanha – em roubos de carros e em agressões e ferimentos; em terceiro lugar, bem atrás do Canadá, em matéria de roubos em residências; em sétimo lugar no que diz respeito a atentados sexuais; e em último lugar na incidência de roubos simples, com um índice inferior à metade do índice da Holanda.
 
Uma bobagem ideológica
Repete-se incessantemente o refrão sobre a inércia das autoridades, a imperícia da justiça e a indignação apavorada ou exaltada das pessoas comuns

No entanto, com dez assassinatos por 100 mil habitantes no início da década passada, e seis por 100 mil hoje, seu índice de homicídios continua seis vezes superior ao da França, da Alemanha e da Grã-Bretanha. Os Estados Unidos, portanto, têm um problema específico de violência mortal por arma de fogo, fortemente concentrado nos guetos urbanos. Essa violência está ligada, por um lado, à posse de uns 200 milhões de fuzis e pistolas (quatro milhões de norte-americanos portam armas normalmente), e por outro lado ao enraizamento da economia ilegal de rua nos bairros desfavorecidos das metrópoles. 
O decréscimo da criminalidade violenta na França, e mais amplamente na Europa, não aproxima mais esses países do “modelo norte-americano” dominado pela violência letal. A taxa de homicídios na França caiu um quinto em dez anos, passando de 4,5 por 100 mil habitantes em 1990 para 3,6 em 2000. Se as agressões e ferimentos voluntários aumentaram significativamente, essa violência, longe de atingir “todo mundo e em toda parte”, permanece concentrada no meio da população jovem de origem operária e é geralmente leve: na metade dos casos, as “agressões” apresentadas às autoridades são exclusivamente verbais; só provocam hospitalização ou dispensa do trabalho num caso em vinte(8). 
Portanto, a afirmação de que a América do Norte era “supercriminosa” e não o é mais a partir do advento da “tolerância zero”, enquanto a França o passa a ser (está subentendido: porque não soube importar com urgência essa medida), não tem como origem a tese criminológica, mas a bobagem ideológica. (grifo meu)
 
O mito da diminuição da criminalidade

2. Em Nova York, como em qualquer outro lugar, foi a polícia que fez desaparecer a criminalidade. Um relatório recente do Manhattan Institute, centro nevrálgico da campanha mundial de punição da miséria, afirma enfaticamente esse mito: a baixa contínua da estatística criminal nos Estados Unidos seria atribuída à ação das forças da ordem, uma vez que estas foram liberadas, como em Nova York, dos tabus ideológicos e das imposições jurídicas que as limitavam(9). Mas também aqui, os fatos são insistentes: todos os estudos científicos concluem que a polícia não desempenhou o papel motor e prioritário que os partidários da gestão penal da insegurança social lhe atribuem – longe disso. 
A primeira prova é que a baixa da violência criminal em Nova York ocorreu três anos antes da chegada ao poder de Giuliani, em fins de 1993, e continuou diminuindo depois de sua posse na prefeitura. Melhor ainda, a taxa de homicídios cometidos sem arma de fogo diminui regularmente desde 1979. Só os homicídios por bala, cujo número crescera muito, entre 1985 e 1990, devido à difusão do comércio de crack, caíram a partir de 1990. Nenhuma dessas duas curvas apresenta inflexão especial na gestão de Giuliani(10). (grifo meu)

Emprego diminui a violência
Com exceção da extrema-esquerda e dos Verdes, todos os candidatos a cargos eletivos promoveram a “segurança” a prioridade absoluta da atuação pública

A segunda prova é que o refluxo da criminalidade violenta não é menos nítido nas cidades que não aplicam a chamada política de “tolerância zero”, inclusive as que, optando por uma abordagem oposta, se empenham em estabelecer relação contínuas com os habitantes de forma a prevenir os atentados, em vez de tratá-los com a repressão penal excessiva. Em São Francisco, uma política de orientação dos jovens delinqüentes para programas de formação, de aconselhamento e de tratamento social e médico permitiu diminuir o número de ingressos em casas de detenção em mais da metade, reduzindo a criminalidade violenta em 33% entre 1995 e 1999 (contra 26% em Nova York, onde o volume de admissões na detenção aumentou um terço nesse período). A terceira prova é que Nova York já havia posto em prática, de 1984 a 1987, uma política de manutenção da ordem similar àquela adotada a partir de 1993, tendo como resultado um aumento significativo da violência criminal... A estratégia policial adotada por Nova York na década de 90, portanto, não é necessária nem suficiente para explicar a queda da criminalidade nessa cidade.
Seis fatores, independentes da atividade da polícia e da justiça, combinaram-se para reduzir significativamente a incidência de crimes violentos nas metrópoles norte-americanas. Inicialmente, um crescimento econômico sem precedentes por sua amplitude e duração deu trabalho a milhões de jovens até então condenados à inatividade ou ao business, inclusive nos guetos e bairros em que o desemprego regrediu nitidamente, embora a maioria desses empregos continue sendo precária e mal remunerada. 
Depois, o número de jovens (principalmente de 18 a 24 anos, os mais inclinados a infrações violentas) baixou, o que se reflete quase mecanicamente por um refluxo da criminalidade de rua. Por outro lado, o comércio de pasta do crack nos bairros desfavorecidos estruturou-se e estabilizou-se; os usuários passaram a consumir outros entorpecentes (maconha, heroína e anfetaminas), cujo tráfico gera menos violência porque opera através de redes de conhecimentos, mais do que por trocas anônimas em lugares públicos(11).
 
O discurso sedutor da “responsabilidade”
Até Chirac, delinqüente por várias vezes reincidente e sem qualquer pudor, ousa pedir “tolerância zero” contra infrações nos bairros mais pobres

Além dessas três causas econômicas e demográficas, um efeito de aprendizagem afastou os jovens nascidos depois de 1975 das drogas pesadas e do estilo de vida a elas associado, por se recusarem a sucumbir ao destino macabro que viram ter seus irmãos mais velhos, primos e amigos: toxicomania incontrolável, reclusão criminal, morte violenta e prematura. Em seguida, as igrejas, escolas, associações diversas, clubes de bairro, coletivos de mães de crianças vítimas de matanças de rua se mobilizaram nas zonas de exclusão e exerceram, por onde ainda podiam, sua capacidade de controle social informal. Suas campanhas de sensibilização e de prevenção acompanharam e reforçaram o movimento de recuo dos jovens da economia predatória da rua. Essa dimensão é totalmente ocultada pelo discurso dominante sobre a queda da criminalidade nos Estados Unidos. Finalmente, as taxas de violência criminal divulgadas pelos Estados Unidos no começo da década de 90 eram anormalmente elevadas e tinham, portanto, todas as chances de se encaminhar para uma baixa, ainda mais porque a combinação dos fatores que a fizeram saltar para fora da norma (tal era a progressão inicial do tráfico do crack) não podia perdurar. 
A conjunção desses seis fatores é suficiente para explicar o declínio da criminalidade violenta nos Estados Unidos. Mas o tempo longo e lento da análise científica não é esse, rápido e irregular, da política e da mídia. A máquina de propaganda de Giuliani soube aproveitar esse atraso natural da investigação criminológica para preencher o vazio de explicação com um discurso pré-fabricado sobre a eficiência da repressão policial. Um discurso sedutor já que, escorado pelo tropo da “responsabilidade”, faz repercutir a temática individualista e utilitarista trazida pela ideologia neoliberal atualmente hegemônica. Mas admitamos, para a necessidade da demonstração, que a polícia tenha tido efetivamente um impacto significativo sobre a criminalidade em Nova York. Resta então a questão de saber como ela teria produzido esse resultado.
Recursos e novas tecnologias

3. Por trás da “tolerância zero”, a reorganização burocrática. Segundo a mitologia planetária difundida pelos think tanks neoliberais e suas correias de transmissão midiáticas e políticas, a polícia nova-iorquina teria abatido a hidra criminal aplicando uma política especial – chamada de “tolerância zero” – que se empenha em perseguir sem trégua as menores infrações cometidas na via pública. Desde 1993, por exemplo, qualquer pessoa que se encontrasse mendigando ou vagando pela cidade, ouvindo o rádio do carro muito alto, sujando ou “grafitando” a via pública, poderia ser automaticamente detida e diretamente enviada para trás das grades: “Acabaram-se os simples controles na delegacia. Se você urina na rua, vai preso. Decidimos consertar as “vidraças quebradas” [ou seja, as mínimas marcas externas de desordem] e impedir quem quer que seja de quebrá-las de novo.” Essa estratégia, afirma seu chefe, William Bratton, “funciona nos Estados Unidos” e funcionaria também “em qualquer cidade do mundo(12).”
 
Assim como a política de submissão ao mercado, a figura político-discursiva da segurança provém diretamente dos EUA, sociedade-farol da humanidade

Esse slogan policial da “tolerância zero” fez a volta ao mundo, mas é uma noção vaga que oculta, pelo próprio fato de misturá-las, quatro transformações concomitantes – mas distintas – da manutenção da ordem pública. A polícia de Nova York inicialmente se empenhou numa vasta reestruturação burocrática: descentralização dos serviços, diminuição dos níveis hierárquicos, rejuvenescimento dos efetivos, indexação da remuneração e da progressão dos delegados de bairro de acordo com os “números” que produzem. Em seguida, seus recursos aumentaram consideravelmente: os efetivos policiais passaram de 27 mil, em 1993, para 41 mil menos de dez anos depois, às custas de um aumento do orçamento da polícia, enquanto, ao mesmo tempo, o orçamento dos serviços sociais era cortado. A polícia procedeu também a um desenvolvimento de novas tecnologias informáticas, entre as quais o sistema Compstat, que permite seguir em tempo real a evolução de delitos e crimes, a fim de redistribuir “em fluxo tenso” os efetivos policiais nos setores atingidos. Finalmente, foram revistos os procedimentos do conjunto dos serviços de acordo com os esquemas dos gabinetes de consultoria em “engenharia empresarial” e foram implementadas ações precisas contra o porte de armas, o tráfico de entorpecentes, a violência conjugal, as infrações do código de trânsito etc.
 
A polícia-empresa em ação

No total, uma burocracia considerada pouco inspirada, passiva, corrompida e que tinha adotado o hábito de esperar que as vítimas do crime apresentassem a queixa para se contentar em registrá-la, transformou-se em verdadeira “empresa” de “segurança” zelosa, dotada de recursos humanos e materiais colossais e de uma atitude ofensiva. Se essa mutação burocrática teve um impacto significativo sobre a criminalidade – o que ninguém chegou a demonstrar –, esse impacto, no entanto, não é motivado pela tática adotada pela polícia. 
 
4. Da “vidraça quebrada” aos “testículos despedaçados”. O último mito planetário sobre a segurança proveniente dos Estados Unidos é a idéia segundo a qual a política de “tolerância zero”, considerada responsável pelo sucesso policial de Nova York, se basearia numa teoria criminológica cientificamente comprovada, a famosa “teoria da vidraça quebrada”. Ela postula que a repressão imediata e severa das menores infrações na via pública detém o desencadeamento de grandes atentados criminosas (r)estabelecendo nas ruas um clima sadio de ordem – prender os ladrões de galinhas permitiria paralisar potenciais bandidos maiores(13). Ora, essa pretensa teoria é tudo menos uma teoria científica, já que foi formulada, há vinte anos, pelo cientista político conservador James Q. Wilson e seu comparsa George Kelling sob a forma de um texto de nove páginas – publicado não numa revista de criminologia, submetida à avaliação de pesquisadores competentes, mas numa revista semanal cultural de grande circulação. E nunca recebeu, desde então, o menor indício de prova empírica.
 
Verniz racional para a discriminação
Apoiado na ciência e na política do crime control, o pensamento único sobre segurança apresenta-se na forma de um encadeamento de “mitos científicos”

Seus adeptos citam sempre, em sua defesa, um livro do cientista político Wesley Skogan, Disorder and Decline, publicado em 1990, que estuda as causas e os remédios para os deslocamentos sociais em quarenta bairros de seis metrópoles norte-americanas. Mas esse livro demonstra, na verdade, que é a pobreza e a segregação racial – e não o clima de “desordem urbana” – que são as principais determinantes da taxa de criminalidade na cidade. Por outro lado, as conclusões estatísticas foram invalidadas em razão do acúmulo dos erros de avaliação e dos dados incompletos. Finalmente, seu próprio autor dá à famosa “vidraça quebrada” o status de simples “metáfora” (14). 
Há coisas ainda mais esquisitas: a adoção do assédio policial permanente da população pobre de Nova York não tem, segundo declarações dos próprios inventores, ligação alguma com qualquer teoria criminológica. A famosa “vidraça quebrada” só foi descoberta e invocada pelos oficiais nova-iorquinos a posteriori, a fim de fantasiar com adornos racionais medidas populares junto ao eleitorado (em sua maioria branco e burguês), mas discriminatórias tanto em princípio como na aplicação, dando assim um aspecto inovador ao que era apenas um retorno a uma velha receita policial. Qualificado por Giuliani de “gênio da luta contra o crime”, Jack Maple, que foi o iniciador dessa política no metrô antes de estendê-la à rua, diz, aliás, sem subterfúgios, em sua autobiografia Crime Fighter, publicada em 1999: “A teoria do vidro quebrado é apenas uma extensão do que tínhamos o hábito de chamar a ‘teoria dos testículos despedaçados’ (breaking balls theory)”. Originária da sabedoria policial comum, que estipula que se os policiais perseguirem com insistência um criminoso notório por pequenos crimes, ele acabará, vencido pelo cansaço, por abandonar o bairro para ir cometer seus delitos em outro lugar.
 
Enxurrada de bobagens transatlânticas

O mestre de obras da política policial de Giuliani debocha abertamente dos que acreditam na existência de uma “ligação mística entre os incidentes menores provenientes da desordem e os atentados criminosos mais graves”. A idéia de que a polícia poderia fazer baixar a criminalidade violenta combatendo incivilidades parece-lhe “patética” e ele dá uma grande quantidade de exemplos contrários tirados de sua experiência profissional. E compara o prefeito que adotasse essa tática policial a um médico que “fizesse um lifting num canceroso”, ou a alguém que fizesse caça submarina e pegasse “golfinhos em vez de tubarões”. (grifo meu)
Considerada pouco inspirada, passiva e corrompida, a polícia de Nova York transformou-se numa “empresa” de “segurança” dotada de recursos colossais 
Jack Maple provavelmente ficaria muito espantado se lesse a “Ficha nº 31” redigida pelos “especialistas” franceses do Instituto de Estudos Superiores da Segurança Interna (IHESI), organização de “pesquisa” do Ministério do Interior. Destinada a orientar os prefeitos franceses na redação de “contratos locais de segurança”, essa ficha indica: “Pesquisas norte-americanas mostraram que a proliferação de incivilidades é apenas o prenúncio para um aumento generalizado da delinqüência. As primeiras condutas irregulares, por menores que pareçam, pelo pouco que se generalizem, denunciam um bairro, centralizam sobre ele outros desvios, são o indício do fim da paz social na via cotidiana. A espiral do declínio se inicia, a violência se instala e, com ela, todas as formas de delinqüência: agressões, roubos, tráfico de entorpecentes etc. (cf. J. Wilson e T. [sic] Kelling, A teoria da vidraça quebrada). Foi com base nas constatações dessas pesquisas que o chefe de polícia de Nova York estabeleceu uma estratégia de luta chamada de ‘tolerância zero’ contra os provocadores de incivilidades, o que parece ter sido um dos fatores da maior redução da criminalidade nessa cidade(15).” 
É difícil conter um sentimento de incredulidade diante de uma tal enxurrada de bobagens transatlânticas. Pois a tática do assédio policial aos pobres implementada por Nova York é só a aplicação plenamente assumida das “teorias” autóctones baseadas no bom senso prático dos policiais. E esse bom senso não faz, no caso, grande sentido. (grifo meu)
 
Justificativa para “limpeza de classe” 
 
Orientada pelos dois melhores especialistas norte-americanos, uma avaliação rigorosa do conjunto dos trabalhos científicos destinados a testar a eficiência da polícia em matéria de luta contra o crime concluiu que nem o número de policiais envolvidos na batalha, nem as mudanças internas de organização e de cultura das forças da ordem (como a introdução da polícia comunitária), nem mesmo as estratégias de levantamento dos locais e dos grupos com maior propensão para o crime (com “exceção possível e parcial” dos programas visando ao tráfico de rua de entorpecentes) tiveram por si só impacto sobre a evolução das infrações. E, como última ironia, os autores designam o dispositivo “Compstat” e a “tolerância zero” como “os candidatos menos plausíveis para explicar o recuo da criminalidade violenta” nos Estados Unidos...(16) (grifo meu)
Esses quatro mitos científicos provenientes do além-Atlântico encaixam-se de modo a formar uma cadeia de aparência silogística que permite justificar a adoção de uma política de “limpeza de classe” essencialmente discriminatória. Baseia-se, na realidade, numa equivalência entre agir fora das normas e estar fora da lei, visa bairros e populações previamente suspeitas – quando não consideradas previamente culpadas. Se é verdade que a sociedade norte-americana foi pacificada pela ação da polícia – enquanto outros países são atingidos por uma “onda” de crimes – graças à política de “tolerância zero”, que por sua vez se baseia numa teoria criminológica sólida (a da “vidraça quebrada”), então como não se apressar em importar essas noções para pôr em prática os dispositivos que elas parecem fundamentar na razão? Na realidade, as quatro propostas-chave da nova vulgata de segurança made in USA são desprovidas de qualquer validade científica e sua eficácia prática origina-se numa crença coletiva sem fundamento na realidade. Reunidas, servem de rampa de lançamento planetário a uma fraude intelectual que, dando um aval pseudocientífico ao ativismo desordenado dos serviços de polícia, contribui para legitimar a mudança para a gestão penal da insegurança social que, por toda parte, é gerada pelo não comprometimento econômico e social do Estado.
(Trad.: Regina Salgado Campos)
(fonte: Le Monde Diplomatique Brasil - http://diplo.uol.com.br)

===
1 - Cf. Loïc Wacquant, Les prisons de la misère, ed. Raisons d’agir, Paris, 1999.
2 - Ler, de Annie Collovald, Violence et délinquance dans la presse: politisation d’un malaise social et technicisation de son traitement, Editions de la DIV, Paris, 2000; e, de Serge Halimi, “L’insécurité des médias”, in Gilles Sainati et Laurent Bonelli (org.), La machine à punir, ed. Dagorno, Paris, 2001.
3 - N.T.: O Chefe de Estado de que fala o texto é Jacques Chirac, reeleito recentemente.
4 - Ler Actes de la recherche en sciences sociales, nºs 138 e 139, junho e setembro de 2001, sobre o tema “L’exception américaine”. Ler também “L’Amérique dans les têtes”, Manière de voir, nº 53.
5 - Ler “Ce vent punitif qui vient d’Amérique”, Le Monde diplomatique, abril de 1999.
6 - Le Figaro, 18 de junho de 2001. Estudo retomada por France Inter: cf. “Le Far West de Radio France”, Le Monde diplomatique, agosto de 2001. Ler também, de Pierre Rimbert, “Envahissants experts de la tolérance zéro”, Le Monde diplomatique, fevereiro de 2001.
7 - International Crime Victimization Survey é uma pesquisa por questionário feita com famílias a cada quatro anos desde 1989 sob a égide do Ministério da Justiça holandês, que compara as taxas de “vitimação” criminal nos principais países desenvolvidos.
8 - Ler, de Laurent Mucchielli, Violences et insécurités. Fantasmes et réalités dans le débat français, ed. La Découverte, Paris, 2001, p. 67.
9 - Ler, de George L. Kelling e William H. Souza, “Does Police Matter? An analysis of the impact of NYC’s Police Reforms”, Nova York, Manhattan Institute, Civic Report., nº 22, dezembro de 2001.
10 - Ler, de Jeffrey Fagan, Franklin Zimring e June Kim, “Declining Homicide in New York City: A Tale of Two Trends”, Journal of Criminal Law and Criminology, 88-4, verão de 1998, pp. 1277-1324.
11 - Sobre o funcionamento diário do tráfico de crack em East Harlem, ler, de Philippe Bourgois, En quête de respect. Le commerce du crack à New York, Editions du Seuil, Paris, 2001.
12 - Ler, de William W. Bratton, com Peter Knobler, Turnaround: How America’s Top Cap Reversed the Crime Epidemic, Nova York, ed. Random House, 1998, p. 229 e 309.
13 - N.T. Há aqui um trocadilho em francês (arrêter les voleurs d’œufs permettrait de stopper les tueurs de bœufs) que não pôde ser mantido na tradução.
14 - Cf. Loïc Wacquant, “Désordre dans la ville”, Actes de la recherche en sciences socials, 99, setembro de 1993; e, de Bernard E. Harcourt, “A Critique of the Social Influence Conception of Deterrence, the Broken Windows Theory, and Order-Maintenance Policing New-York Style”, Michigan Law Review, 97-2, novembro de 1998, pp. 291-389.
15 - Institut des hautes études de la sécurité intérieure, Guide pratique pour les contrats locaux de sécurité, ed. La Documentation française, Paris, 1997, pp.133-134. Sobre o IHESI, ler, de Pierre Rimbert, op. cit.
16 - Ler, de John E. Eck e Edward R. Maguire, “Have Changes in Policing Reduced Violent Crime?”, in Blumstein, The Crime Drop in America, ed. Cambridge University Press, Nova York, 2000.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

I don't believe that: Rudolph Giuliani fará palestra beneficente da ADVB/SC em Florianópolis

Pavão, ops!, Pavan, começou a campanha da direita pra próxima eleição ao Governo do Estado de SC. Inaugura o processo com o discurso mais prazeiroso à elite: TOLERÂNCIA ZERO! Tia Ângela também já bebeu nesta fonte nos idos anos de 1994-1996... quando mandou uma comitiva estadual conhecer a descoberta da pólvora: conter a pobreza mandando tudo pra prisão! Aliás, o Maj. Ramlow não tava junto dela nesta época?

Rudolph Giuliani fará palestra beneficente da ADVB/SC em Florianópolis


Ex-Prefeito de New York virá a Florianópolis no dia 2 de dezembro



Confirmado. O ex-prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, fará palestra beneficente promovida pela ADVB SC no dia 02 de dezembro, em Florianópolis, em local ser definido. Giuliani aceitou o convite feito pessoalmente pelo vice-governador Leonel Pavan, durante recente viagem realizada aos Estados Unidos. Toda a receita com a venda dos ingressos será doada para uma entidade ligada à segurança ou para compra de equipamentos.  
Rudolph Giuliani, que administrou Nova York no período de 1994 a 2002, ficou conhecido mundialmente por ser o prefeito do 11 de Setembro de 2001, após os atentados terroristas que atingiram a cidade. Outro destaque de sua administração foi a política conhecida como “Tolerância Zero”, que conseguiu reduzir a criminalidade em 57%.  
O ex-prefeito se tornou uma referência de liderança. Em suas palestras, costuma elencar sete princípios de um grande líder: conhecer a essência do líder, ser otimista, ter coragem, estar preparado, saber trabalhar em equipe, comunicação e amar as pessoas. 
A palestra tem o apoio do Governo de Santa Catarina.


Foto: divulgação.
Fonte: www.acontecendoaqui.com.br
Data: 28/10/2009
Fique por dentro de Floripa
www.deolhonailha.com.br

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Primeira Decisão de Tiffoli



Terça-feira, 27 de Outubro de 2009 - Em sua primeira decisão na Corte, ministro Dias Toffoli concede HC à condenada por roubo de cosméticos
Em sua primeira decisão como ministro do Supremo Tribunal Federal, o ministro José Antonio Dias Toffoli deferiu liminar em Habeas Corpus (HC 101256) onde determina a suspensão da pena imposta à L.S.M.N., de Lajeado (RS), condenada a dois anos de reclusão em regime semiaberto pelo furto de cremes hidratantes de uma farmácia.
O HC foi impetrado pela Defensoria Pública da União buscando o reconhecimento da prescrição do crime ou da aplicação do artigo 155, parágrafo 2º, do Código Penal, que trata do furto cometido por pessoa primária envolvendo objeto de pequeno valor (furto privilegiado).
A condenação a dois anos de reclusão em regime semiaberto pela prática de furto qualificado (artigo 155, parágrafo 4º, do Código Penal) foi convertida em pena restritiva de direitos, por meio da prestação de serviços à comunidade e ao pagamento de um salário mínimo em favor do Conselho Comunitário Pró-Segurança Pública de Lajeado. Entretanto, o STJ, ao analisar recurso do Ministério Público gaúcho, manteve a pena de prisão.
Em sua decisão, o ministro Dias Toffoli afirma que, de fato, a antiga jurisprudência do STF era contrária à possibilidade de aplicação da causa de diminuição de pena prevista no parágrafo 2º do artigo 155 do Código Penal às hipóteses de furto qualificado, por considerar tais institutos incompatíveis entre si. “Todavia, recentemente, na sessão de 13/10/2009, a Primeira Turma desta Suprema Corte, por maioria, na linha do entendimento que já vinha sendo adotado pela Segunda Turma, deferiu habeas corpus para admitir a compatibilidade entre a hipótese do furto qualificado e o privilégio de que trata o § 2º do art. 155 do CP”, afirmou o novo ministro do STF referindo-se ao HC 97051, relatado pela ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha.
O furto ocorreu no dia 9 de março de 2002, na Farmácia Agafarma. Em companhia de uma colega, L.S. furtou seis embalagens de creme, avaliadas em R$ 177,00. “Entendo que o entendimento adotado no precedente antes referido aplica-se perfeitamente à hipótese dos autos. Com essas considerações, defiro o pedido de liminar, para suspender a execução da pena imposta à paciente, devendo ela, caso já se encontre presa, ser imediatamente solta, sem prejuízo da condenação imposta. Expeça-se o salvo-conduto”, concluiu o ministro Dias Toffoli - sem grifo no original.
===
Fonte: Lista de Discussão Rede Nacional de Advogados Populares - RENAP

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

segunda ao sol...

... e a clausura definitivamente potencializa meus sentimentos!

 Solidão é lava
Que cobre tudo
Amargura em minha boca
Sorri seus dentes de chumbo...

Solidão, palavra
Cavada no coração
Resignado e mudo
No compasso da desilusão...





beijos dissertativos na reta final... defesa marcada (ainda não confirmada!)

===
Música Marisa Monte & Paulinho da Viola

sábado, 24 de outubro de 2009

Por uma imprensa livre: "Il Fatto Quotidiano"

Mecece destaque aqui no Blog!

Il Fatto Quotidiano: por uma imprensa livre 

Em poucos dias de campanha promocional via rádio e Internet, o primeiro jornal italiano auto financiado recolheu cerca de cinco milhões de euros em assinaturas

 Por Anelise Sanchez

 


 

Roma – No último dia 23 de setembro os italianos vivenciaram um acontecimento inusitado. Pela primeira vez, as bancas de jornais de todo país receberam exemplares do primeiro jornal auto financiado, chamado de Il Fatto Quotidiano.
Fundado por Antonio Padellaro, ex -diretor de L’Unità - antigo órgão oficial do Partido Comunista Italiano – e aplaudido pela nata do jornalismo de esquerda, o veículo conquistou 30 mil assinantes antes mesmo da publicação de sua primeira edição. Um sinal inequívoco da fome italiana por uma imprensa desvinculada dos interesses partidários e daqueles privados.
Historicamente, a subvenção pública em favor da editoria italiana aprofunda as suas raízes no período fascista, quando o chamado Ministério da Cultura Popular apoiava politicamente o lançamento da revista quinzenal La Difesa della Razza (A Defesa da Raça). O fascismo desmoronou e nasceu a República mas, mesmo assim, o apoio estatal aos jornais sofreu inúmeros retoques, mas permaneceu vivo.
Nas últimas décadas, o objetivo do governo era garantir o pluralismo e favorecer a circulação de idéias mas, na verdade, a mídia do país foi dominada por jornais que firmaram-se graças a uma declarada filiação política partidária.
Tudo começou em 1981, após a promulgação de uma lei que previa um auxílio econômico estatal aos editores de jornais e periódicos considerados órgãos de partido. Mais tarde, em 1987, a normativa sofreu algumas alterações. A principal delas estabelecia que o financiamento seria destinado aos jornais de facções políticas que tivessem no minimo dois deputados eleitos no Parlamento.
Foi o início de um matrimônio indissolúvel entre imprensa e poder que, em pouco tempo, gerou mais de 386 periódicos que reivindicavam o próprio direito de obter o financiamento.
Em 2000, a lei tornou-se mais restritiva, elevando a dez o número mínimo de parlamentares para obter ajuda econômica como jornal de partido e especificando que a subvenção também poderia ser destinada à publicações editadas por cooperativas de jornalistas ou fundações sem fins de lucro.
Sendo assim, não é difícil entender o crescimento substancial do número de cooperativas editoriais que criaram jornais “ad hoc” para beneficiar-se de tal subvenção que, desde 2008, não é mais propocional à sua tiragem.
Estima-se que, anualmente, o estado italiano desembolse quase 700 milhões de euros para financiar a imprensa, incluindo a católica. Segundo os últimos dados divulgados pelo Departamento da Informação e Editoria, só em 2007 o jornal Avvenire recebeu exatamente 6.174,758 milhões de euros.
A corrida para apoderar-se de uma polpuda fatia desta subvenção inclui jornais de direita e de esquerda, sem excluir aqueles que defendem com unhas e dentes a livre empresa e condenam o assistencialismo, como Il Foglio e Libero.
Hoje, com a crise da mídia impressa, muitos jornais italianos não sobreviveraim sem este apoio econômico, principalmente depois que o ministro da economia Giulio Tremonti anunciou cortes de 83 milhões para esta verba em 2009 e de 100 milhões em 2010.
Por este motivo, o lançamento do jornal Il Fatto Quotidiano representa uma novidade absoluta para o mercado italiano, pois recusará qualquer financiamento público, inclusive aqueles indiretos, como o reembolso de despesas como energia elétrica e tarifas postais do qual se servem grandes grupos editoriais privados. A idéia é sobreviver apenas com verbas representadas pelas assinaturas e as vendas nas bancas de jornais, publicando aquilo que para uma grande parte da imprensa não faz notícia.
No panorama italiano é difícil encontrar os chamados editores puros, dedicados exclusivamente ao setor da informação, mas Il Fatto é propriedade de uma pequena cooperativa de sócios, entre eles aqueles que compõem a sua redação e que possuem a mesma quota acionária. “É a única maneira de escrever com total liberdade intelectual, tratando temas que outros descartam por razões políticas, problemas de noticiabilidade o imposições provenientes do alto”, explicou Padellaro antes do lançamento da publicação.
Em poucos dias de campanha promocional via rádio e Internet, o novo jornal recolheu cerca de cinco milhões de euros em assinaturas e, no editorial do primeiro número de Il Fatto Quotidiano, Padellaro sublinha que, para quem lhe pergunta qual será a linha política do jornal, a resposta é uma só: a Constituição da República. (sem grifo no original)
 
Anelise Sanchez é jornalista
versão on-line
 
 

Palavras para as vésperas

OXALÁ! Todo o meu APOIO! Toda a minha SOLIDARIEDADE aos Irmãos Uruguaios!



Em discurso proferido no encerramento da campanha da Frente Ampla, no Obelisco de Montevidéu, o escritor Eduardo Galeano manifestou a esperança de que a eleição deste domingo no Uruguai vai libertar o país de "duas traves metidas na roda da democracia". Uma delas é a que impede o voto por correio dos uruguaios que vivem no exterior. A outra é a lei da impunidade, a lei de caducidade da pretensão punitiva do Estado (contra os crimes da ditadura), "batizada com esse nome rocambolesco pelos especialistas na arte de não chamar as coisas pelo seu nome".

Falta muito pouco para que o povo uruguaio eleja novo governo.
Ao mesmo tempo, nas mesmas urnas, será submetida a plebiscito a possibilidade de libertar-nos de duas traves metidas na roda da democracia.
Uma delas é a que impede o voto por correio dos uruguaios que vivem no exterior. A lei eleitoral, cega de cegueira burocrática, confunde a identidade com o domicílio. Diga-me de onde vens e te direi quem tu és. Os uruguaios da pátria peregrina, em sua maioria jovens, não têm direito a voto se não podem pagar a passagem. Nosso país, país de velhos, não só castiga os jovens negando-lhes trabalho e obrigando-os ao exílio, como também nega o exercício mais elementar dos direitos democráticos. Ninguém se vai porque quer. Os que foram para o exterior são traidores? É traidor um de cada cinco uruguaios? Traidores ou traídos?
Oxalá consigamos acabar de uma vez por todas com essa discriminação que nos mutila.
E oxalá acabemos também com outra discriminação ainda pior, a lei da impunidade, lei de caducidade da pretensão punitiva do Estado, batizada com esse nome rocambolesco pelos especialistas na arte de não chamar as coisas pelo seu nome.
A Corte Suprema de Justiça acaba de estabelecer que essa lei viola a Constituição. Há muito tempo se sabe que também viola nossa dignidade nacional e nossa vocação democrática. É uma triste herança da ditadura militar, que nos condenou ao pagamento de suas dívidas e ao esquecimento de seus crimes.
No entanto, há 20 anos, essa lei infame foi confirmada por um plebiscito popular. Alguns dos proponentes daquele plebiscito estão reincidindo agora, e com muita honra: perdemos, por muito pouco, mas perdemos, e não nos arrependemos. Acreditamos que aquela derrota foi em grande medida ditada pelo medo, um bombardeio publicitário que identificava a justiça com a vingança e anunciava o apocalipse, larga sombra da ditadura que não queria ir embora; e acreditamos que nosso país demonstrou, nestes primeiros anos de governo da Frente Ampla, que já não é aquele país que o medo paralisava.
Acreditamos nisso e, oxalá, não me equivoque.
Oxalá triunfe o senso comum. O senso comum nos diz que a impunidade estimula a delinquência. O golpe de Estado em Honduras só o confirmou. Quem pode surpreender-se que os militares hondurenhos tenham feito o que fazem há muitos anos, com o treinamento do Pentágono e a permissão da Casa Branca?
A luta contra a impunidade, impunidades dos poderes e dos poderosos, está se desenvolvendo nos quatros pontos cardeais do mundo. Oxalá possamos contribuir para desmascarar os defensores da impunidade, que hipocritamente gritam aos céus ante a falta de segurança pública, ainda que saibam que os ladrões de galinhas e os assaltantes de bairros são bons alunos dos banqueiros e dos generais recompensados por suas façanhas criminais.
Oxalá o próximo domingo confirme nossa fé em uma democracia sem coroas, nem as do uniforme militar, nem as do dinheiro.
Oxalá possamos envolver esta lei em papel celofane, em um pacote bem amarrado, com laço e tudo, para enviá-lo de presente a Silvio Berlusconi. Este grande mago da impunidade universal que já atravessou mais de 60 processos e não conhece nenhum cárcere nem sequer de visita, nos agradecerá o obséquio e seguramente saberá encontrar para ele alguma utilidade.
Oxalá.
A única coisa certa é que, aconteça o que aconteça, a história continuará, e continuará o incessante combate entre a liberdade e o medo.
Eu só quero invocar uma palavra, uma palavra mágica, uma palavra que abre portas, que é, quiçá, a mais universal de todas. É a palavra “abracadabra”, que em hebraico antigo significa: Envia teu fogo até o final. Como uma homenagem a todos os fogos caminhantes, que vão abrindo portas pelos caminhos do mundo, eu a repito agora:

Caminhantes da justiça,
portadores do fogo sagrado,
Abracadabra, companheiros!

(Versão do discurso pronunciado no Obelisco de Montevidéu, no fechamento da campanha contra a lei de impunidade, na noite do dia 20 de outubro) 
Publicado originalmente no jornal La Jornada (México) 
Tradução: Katarina Peixoto

Publicação no Brasil: www.cartamaior.com.br


quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Mera retórica

... de quem pensa que não faz parte do problema!
Assim como eu que só fotografei o STF de longe, os Ministros da Casa insistem na retórica de apontar o problema latente (e que sai do grau de invisibilidade) mantendo a mesma matriz eficientista de criminologia, numa lógica de causas e consequências - ideologia do tratamento, ao qual ele mesmo afirma que historicamente não deu certo.

Até quando meus Senhores? Até quando?

 




Presidente e vice do STF defendem mudanças nas regras de tratamento de presos

Durante o 71º Curso Internacional de Criminologia, que acontece nesta quarta-feira (21) em Belém (PA), o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes, e o vice presidente da Corte, Cezar Peluso, defenderam mudanças nas regras para tratamento de presos no Brasil.
O curso acontece ao mesmo tempo em que também se realiza em Belém a Assembleia Geral do Comitê Permanente da América Latina para Revisão das Regras Mínimas da ONU (Organização das Nações Unidas) para Tratamento de Presos, do qual o ministro Peluso é presidente.
Na abertura do curso, o ministro Gilmar Mendes lembrou o trabalho realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por meio dos mutirões carcerários em todo o país com o objetivo de identificar os problemas existentes nos presídios. Ao todo, o CNJ analisou 67.336 processos em 17 estados, resultando em 20.656 benefícios, sendo 12.039 alvarás de soltura em favor de presos que já haviam cumprido sua pena.
“Se somente um homem estivesse preso injustamente, já teria valido a pena o esforço, pois além de não haver como mensurar o valor de um dia de liberdade, estar-se-ia reiterando o apreço da nação à higidez do Estado de Direito”, afirmou o ministro Gilmar Mendes.
Ele destacou ainda a necessidade de reinserção social para dar oportunidade de recuperação aos egressos do sistema penitenciário. Lembrou que ontem foi assinado com a Fifa um convênio para treinamento e ocupação de postos de trabalhos por presos que já tenham cumprido sua pena (...).
De acordo com o ministro, o Brasil precisa se adequar à exigência de atendimento a um patamar de regras mínimas para tratamento de prisioneiros. Ele destacou a situação de degradação com sujeira, agressões sexuais, abuso de autoridade que resultam em motins e violência gratuita, além dos custos elevadíssimos para a manutenção de presos, falta de assistência jurídica e o frontal e rotineiro desrespeito a lei de execução penal e à Constituição Federal.
O ministro relatou diversos flagrantes de desrespeito a direitos dos presos como pessoas inocentes há anos à espera de julgamento.
Segundo ele, apesar de o Brasil ainda estar longe de cumprir ao menos satisfatoriamente as regras mínimas para tratamento de presos, há uma boa notícia que é o trabalho desenvolvido nessas atividades do CNJ, que “começam a reverter esse quadro da ineficiência crônica do sistema quanto à capacidade do estado de sair da letargia”.
“O Judiciário não se contentará com medidas emergenciais, pois o que se busca é o correto cumprimento da lei penal com plena e efetiva reintegração à comunidade”, garantiu.

Comitê da ONU
O ministro Cezar Peluso discursou no encontro como presidente do Comitê Permanente da América Latina para Revisão das Regras Mínimas da ONU para tratamento de presos. Em sua opinião, não só o Brasil, mas todos os países precisam observar determinados padrões de punição civilizada. Peluso apresentou uma proposta para que seja celebrada uma convenção internacional para que os países se comprometam a adotar as regras, assim, “elas passam do plano de meros projetos e meras referências ao plano de implementações efetivas em cada país”.
Essa proposta do ministro deverá ser discutida no âmbito da ONU para atualizar as regras que não acompanharam a vida moderna. O ministro criticou ainda o sistema carcerário no país, que classificou como “desastroso”, uma vez que não cumpre a sua função. Lembrou que CNJ tem demonstrado isso corretamente e que só o fato de manter pessoas que já cumpriram pena ou que não têm sequer processos, já justifica o reconhecimento do fracasso do sistema carcerário brasileiro.
Outra reflexão do ministro Peluso em seu discurso é de que a criminologia deve ser estudada como uma ciência empírica e deve buscar novas propostas, bem como o direito penal deve estar pronto para se reinventar. O relatório final do trabalho deste comitê será submetido ao 12º Congresso das Nações Unidas sobre o tema que se realizará em Salvador (BA), em abril de 2010.
O ministro Peluso acredita que esse congresso será uma oportunidade ímpar para discutir o tema, pois ali estarão reunidos diversos chefes de estado e outras autoridades dos países membros da ONU. Ele citou Norberto Bobbio ao dizer que "o mais importante não é fundamentar os direitos do homem, mas protegê-los"
“Creio que está maduro o tempo de ultrapassar do plano das recomendações acerca do tratamento de presos”, afirmou o ministro ao defender regras mínimas específicas, mas com caráter mandatório, cuja implementação seja assumida pela comunidade internacional.  Após a participação no curso de criminologia, o ministro Peluso preside reuniões do Comitê que são reservadas apenas aos seus membros e acontece no Hotel Hilton, em Belém.
CM/EH

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Caros Amigos: uma aula sobre "autos de resistência" usada pela Polícia Fluminense




Máquina mortífera

Uma política de extermínio levada a cabo pela polícia carioca, com apoio de setores da mídia e a omissão do Ministério Público e do Judiciário, vem provocando um verdadeiro genocídio no Rio de Janeiro. Nesta década já foram eliminadas quase 10 mil pessoas, a maioria delas nas favelas da capital - Por Marcelo Salles

Companheir@s!
Largo mão hoje das queixas cotidianas pessoais e trago uma Matéria FANTÁSTICA da Caros Amigos sobre o índice de letalidade da Polícia Fluminense.
Aos Assinantes (assim como eu!) não deixem de ler. Aos demais, só a parte disponibilizada na página da Revista já é aterrorizante, além da aula explicativa do tão famoso "autos de resistência" (justificativa para grande parte das execuções sumárias no Rio).
Conheci Márcia, Mãe de Hanry, agora em Brasília, na 1ª CONSEG. Foi como convidada para receber um prêmio (não me recordo qual). Linda e corajosa Mulher, sem dúvida. 
O que me induz à reflexão, isso não só com base na experiência dela, mas de outras pessoas que tenho conversado, é: por que muitas pessoas só saem à luta na hora que a violência bate à sua porta?
Falo por mim, nunca tive nenhuma vivência pessoal ou familiar de violência (urbana), mas ver as dores alheias, ver a brutalidade das relações sociais, me dói profundamente. Quando vejo qualquer notícia, foto, ou qualquer outra informação sobre as ocorrências criminais, principalmente aquelas que conduzem à morte de qualquer ser - humano, animal e vegetal (estou aqui aderindo ao conceito de acesso à cidadania indistinto de todos os seres que compõem a biosfera), parece que é tirada parte de mim...
Instigo-os a mudar as dinâmicas, agir diferente! Não se sensibilizem com a violência somente quando ela a atingir (ou chegar próximo). 
Pare e pense que SOLIDARIEDADE pode ser uma prática prensente no dia a dia de todos. Ao invés de fechar os olhos, as portas, as janelas à pobreza, ao mendigo, ao drogado, reflita qual a condição que ele teve (eles tiveram) de fazer diferente? 
Não pense, por exemplo, se eu der dinheiro, vai comprar droga. Pense que talvez ele realmente esteja com fome e esteja precisando de sua ajuda.
Mude o foco: exerça a BOA-FÉ para com o outro. Persista... 
(e chega! tô entrando numa viagem transcendente!)


LEIA O TEXTO!!!!!!!!!





===
(parte da Matéria da Revista Caros Amigos, disponível na pégina www.carosamigos.com.br)


Hanry Silva voltava da casa de uma colega, numa favela chamada Boca do Mato, na Zona Norte do Rio de Janeiro. O nome tem sua razão de ser. O lugar dá para uma montanha, no bairro Lins de Vasconcelos, onde a vegetação nativa ainda é preservada. Em vez de retornar pela rua, ele decidiu fazer o trajeto mais curto: pelo alto do morro. Assim, caminhando próximo aos postes de energia do topo da montanha, Hanry cruzou pouco mais que 1 Km. A vista abrevia ainda mais a viagem: com tempo bom é possível ter uma visão panorâmica da cidade, emoldurada pela Ponte Rio-Niterói e pela Baía de Guanabara. Eram cinco da tarde quando se aproximava de sua casa, no Morro do Gambá – também conhecido como Nossa Senhora da Guia. 
O estudante já estava bem perto, nem 100m faltavam. Ao chegar, tomar banho, trocar de roupa e seguir para o colégio. Estava de bermuda preta e sem camisa. Vinha balançando a chave de casa, despreocupado, fazendo um caminho ao qual já se habituara. No entanto, aquele 21 de novembro de 2002 seria diferente. Hanry foi surpreendido por policiais do 3º Batalhão de Polícia Militar e arrastado uns 20m abaixo. Foi posicionado entre uma pedra de 2m x 1,5m e um arbusto com folhagem densa e suficientemente grande para encobrir o resto de visão que alguém poderia ter do lugar. A casa mais próxima dali fica a uns dez minutos de caminhada, em mata semifechada. 
Por volta de 17h40, um estampido ecoou no Morro do Gambá. Aos dezesseis anos de idade, Hanry foi assassinado com um tiro certeiro no coração. Tinha 1,65m, era mulato, corpo seco. Cursava o primeiro ano do ensino médio – nunca repetiu – e sonhava ser jogador de futebol, como tantos outros garotos. 
No dia seguinte sua mãe acordou preocupada. O filho não havia dormido em casa. Márcia Jacintho percorreu a favela toda atrás de notícias, quando teve a ideia de ir ao hospital mais próximo. No Salgado Filho ficou momentaneamente aliviada: apenas dois jovens haviam sido encaminhados pela polícia na noite anterior, ambos descritos como traficantes que já chegaram mortos. Márcia continuava a busca quando alguém ligou do IML: “Vem pra cá porque acho que mataram seu filho”. 
Chegando lá, Márcia começou a morrer em vida. A dor é tanta que hoje, quase sete anos depois, ela ainda chora quando recorda a cena: “Meu filho não teve velório. Tava inchado, um cheiro muito forte, muito escuro, ninguém o reconheceu”. Márcia começou a morrer por um lado, mas de outro nasceu uma guerreira que iria lutar com unhas e dentes para fazer justiça. Suas razões de viver passaram a ser basicamente essas: provar que seu filho não era traficante, como acusara a polícia, e responsabilizar os assassinos. 
Inicialmente, Márcia fez o trabalho de investigação sozinha, pois a autoridade competente alegava não dispor dos recursos necessários. Então ela voltou ao local do crime, fez a primeira reconstituição com as próprias sandálias, fotografou, encontrou testemunhas. Até o boletim ambulatorial do hospital ela foi pegar, já que a Delegacia de Polícia não se mexia. 
Essa história ela me conta enquanto vasculhamos os arredores de onde Hanry foi assassinado. Do pé ao topo, demoramos quase uma hora de subida bastante puxada. O Morro do Gambá tem centenas, talvez milhares de casas, de todos os tipos: alvenaria, madeira, compensado ou tudo misturado. Aqui, a maior parte da população é negra. E pobre. Serviços públicos como coleta de lixo demoram a chegar, deixando o chão imundo, sobretudo nas partes mais altas. Ao lado da pequena quadra de futebol, de terra batida, há um barranco imenso, uns cem metros quadrados de sacos plásticos, restos de comida e sujeira de todo tipo. 
Conforme subimos, percebo que o adensamento populacional vai se reduzindo, até que cruzamos a última casa – um compensado de madeira de uns 20m quadrados, no máximo, de onde saem seis pessoas. Uma mulher idosa, uma criança bem pequena e os demais, adolescentes. Márcia arrisca o caminho da esquerda, mas o mato está muito fechado. “Tem certeza que é aí?”, pergunto. “É sim, é que não venho aqui faz tempo”. Continuo seguindo, meu receio em franco contraste com o seu destemor. Até que um dos adolescentes da última casa, um negro bem preto, se aproxima e fala: “Tia, não é por aí, não. É pelo outro lado”. E nos mostra o caminho. 
Passaram-se dois anos e nove meses até que a perícia oficial agisse. A partir daí, apareceram várias contradições na versão dos policiais, que alegaram, por exemplo, troca de tiro com bandidos que estariam em cima de uma pedra, levando a crer que o disparo teria vindo de baixo para cima (e não o contrário, como foi comprovado pelo laudo cadavérico). O horário alegado pelos policiais também não batia. Como poderia haver uma troca de tiros às 19h40 no alto do morro se a entrada do garoto no hospital teria sido às 20h08? Seria como enfrentar seis ou sete bandidos fortemente armados, como argumentaram os policiais, recolher o corpo baleado, descer o morro inteiro carregando o fardo, colocá-lo na viatura e deixá-lo no hospital, que fica a vinte minutos dali. Nem o The Flash.  
Seis anos depois, Márcia conseguiu levar a julgamento dois dos onze policiais militares que havia acusado. Marcos Alves da Silva foi condenado a nove anos de prisão por homicídio doloso e fraude processual (simulou apreensão de arma e droga com Hanry) e Paulo Roberto Paschuini a três anos pelo último crime. Os dois vão recorrer, sendo que o segundo em liberdade. 
O caso de Hanry foi um dos 9.179 óbitos registrados como “autos de resistência” – quando a polícia mata um opositor em legítima defesa – entre 2000 e 2009 (até maio), de acordo com o Instituto de Segurança Pública, órgão vinculado ao Executivo Estadual. Uma média de 2,67 mortes por dia. É como se em dez anos toda a população do bairro da Glória sumisse do mapa. Por outro lado, foram registrados 59.949 homicídios dolosos, no mesmo período; crimes que o Estado não foi capaz de evitar.
O número de “autos de resistência” dá à polícia do Rio o título de campeã de letalidade. Entre todas as outras corporações similares no mundo, é a que mais mata – e também a que mais morre (dado que, por si só, evidencia uma política de segurança equivocada). Até o relator da ONU para execuções sumárias e extrajudiciais, Philip Alston, declarou, após recente visita ao Rio de Janeiro: “no Brasil os policiais matam tanto em serviço como fora de serviço e nenhuma investigação é feita já que todos os índices se justificam a partir de ‘autos de resistência’ ou ‘mortes em confronto’”. 
A origem da ferramenta jurídica “auto de resistência” está na Ordem de Serviço “N”, nº 803, de 2/10/1969, da Superintendência da Polícia Judiciária, do antigo estado da Guanabara. O dispositivo afirma que “em caso de resistência, [os policiais] poderão usar dos meios necessários para defender-se e/ou vencê-la” e dispensa a lavratura do auto de prisão em flagrante ou a instauração de inquérito policial nesses casos. 
Registre-se: não são raras as situações em que os policiais necessitam usar a força como resposta a ações hostis de traficantes varejistas. É como explica o delegado Marcus Nunes, coordenador da CORE, unidade de elite da Polícia Civil: “Somos muitas vezes recebidos a tiros. Geralmente o policial entra numa comunidade em tese hostil porque é controlada por um grupo fortemente armado, querendo fazer de tudo pra não ser preso, usando todos os esforços necessários, às vezes com equipamentos de primeira geração, munição em fartura, granadas”. No entanto, como reconhece o delegado, essa situação de extrema pressão sobre o policial, aliada a outros fatores, pode levar a execuções registradas como autos de resistência. 
“Me chamava a atenção a diferença no preenchimento dos ROs [Registros de Ocorrência]”, comenta a antropóloga Ana Paula Miranda, que foi diretora-presidente do Instituto de Segurança Pública. Por um lado, havia falta de cuidado nos registros em geral, mas aqueles referentes aos autos de resistência “vinham bem montados, com informações padronizadas e a falta de testemunhas que não fossem policiais”, diz a pesquisadora da Universidade Federal Fluminense. Ana Paula chama a atenção para a escalada da violência da polícia, que cada vez mata mais e prende menos (ver quadro na página 31 - edição impressa Caros Amigos). 
A polícia do Rio de Janeiro atua com muito pouco controle, interno ou externo. A Corregedoria nem sempre atua com a isenção desejada, as armas utilizadas em operações dificilmente são identificadas e os policiais que se envolvem em troca de tiros não recebem atenção especial do governo – em outros Estados, como São Paulo, já existe uma política assistencial voltada para esses profissionais da segurança, como auxílio psicológico. No entanto, engana-se quem acredita que a polícia é a única responsável pelo atual estado de coisas. Quando se registra uma ocorrência como “auto de resistência”, o delegado tem trinta dias para investigar e, então, deve enviar suas conclusões para o Ministério Público Estadual. 
O MP é o titular da Ação Penal e, diante do relatório, o promotor deve decidir se retorna o material para a delegacia solicitando novas apurações, se oferece denúncia contra o policial ou se encaminha o processo com pedido de arquivamento para o juiz. Neste caso, se o magistrado concordar, o processo é arquivado. Se discordar, a decisão final passa à Procuradoria Geral de Justiça, cujo titular é indicado pelo governador do Estado. 
Para esclarecer os dados, procurei o Ministério Público. Fiz o primeiro contato no dia 17 de agosto. Na assessoria de imprensa, fui atendido por Paolla Serra, depois por Lívia Monteiro. Não me deram retorno. No dia 14 de setembro, voltei a insistir. Dessa vez falei com Leonardo, que também não me respondeu. Alguns dias antes eu havia ido ao Tribunal de Justiça, onde conversei com três defensores públicos. Eles disseram que recebem pouquíssimos inquéritos em casos de autos de resistência, às vezes nem um por mês, o que indica poucas denúncias do MP contra policiais. 
O pioneiro a analisar os pareceres do Ministério Público sobre os autos de resistência foi o desembargador Sérgio Verani, no livro “Assassinatos em nome da lei” (entrevista à página 31 - edição impressa da Caros Amigos). Na apresentação da obra, o jurista Evandro Lins e Silva anota: “Examinando dezenas de inquéritos, alguns deles em que funcionou como juiz, Sérgio Verani pôde identificar uma uniformidade ideológica que conduziu ao arquivamento ou à absolvição, em todos eles, dos policiais acusados do assassinato de 42 pessoas”. Nesta cesta ideológica encontra-se o pedido de arquivamento, assinado por um promotor, que classifica a vítima da ação policial como “micróbio social”. O caso é de 1982, mas permanece atual. Vinte e dois anos depois, a 21a Promotoria de Investigação Penal de Bangu acusou os bandidos que teriam enfrentado a polícia de “verdadeiros soldados do mal”. 
“No ano passado aquele comandante [coronel Marcos Jardim] de certa forma repetiu isso: ‘[a PM é o melhor] inseticida social’. Inseticida social!”, recorda Sérgio Verani: “Como também uma expressão usada quando foi preso o Elias [Maluco, acusado de matar o jornalista Tim Lopes]. E aí foram expedidos mandados de busca e apreensão e o juiz escreveu na decisão dele que o Grupo do Elias era um ‘lixo genético’. O juiz escreveu isso: ‘lixo genético’! Que é a mesma coisa de ‘micróbio social’, ‘inseticida’. O desprezo com a vida. Uns podem viver, mas esses desclassificados não”. 
“Quem mata é a Polícia, mas quem enterra é o Judiciário”

Outro indicativo de descaso do Poder Judiciário é que em muitas sentenças o magistrado abre mão do despacho fundamentado e passa a usar uma mera etiqueta adesiva, tipo essas da marca Pimaco, para determinar o encerramento do processo investigatório. Como consta da decisão assinada em 10 de janeiro de 2005, a respeito de três mortes causadas por policiais na favela do Rebu, em Senador Camará: “Na forma de promoção do MP de folhas retro, determino o arquivamento do presente feito. Dê-se baixa e arquive-se”.
Por essas razões, o delegado de Polícia Civil Orlando Zaccone, mestre em Ciências Penais, não tem dúvidas em afirmar: “Quem mata é a polícia, mas quem enterra é o Judiciário”. Profundo conhecedor da Criminologia Crítica, Zaccone alia a teoria à prática. Foi ele quem conduziu as investigações que solucionaram a Chacina do Borel, em 2003, em que os crimes foram inicialmente registrados como autos de resistência. É com essa autoridade que ele analisa: “O que vai definir o arquivamento dos autos ou o processo dos policiais pela morte da vítima é se a vítima está ou não definida como ‘inimigo’, traficante, gerando uma ‘legitimidade’ na ação da polícia”.

[texto sem grifo no original] 
 Marcelo Salles é jornalista e coordenador da Caros Amigos no Rio de Janeiro - salles@carosamigos.com.br


(matéria continua na edição impressa da Caros Amigos ou adquira pela página www.carosamigos.com.br)

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

E o vento... me levou

Caríssim@s, achei tão lindo e tão parecido com meu momento de vida atual!!!
Beijos...




Curta de Animação, Brasil (RJ), 2005, 1 minuto, cor.

Diretor William Côgo


Achado e Disponível em Porta Curtas Petrobrás


e o vento... me levou


PS. Já perceberamo quanto estou "rasa", né?! Toda minha profundidade está direcionada à "coisa" (uns chamam de dissertação! risos!).

Após a conclusão... pretendo tirar férias! Não penso em publicar (por um tempo) nada de assuntos sérios... e já tô começando a treinar agora! Tô enjoada de Criminologia, Segurança Pública, Direito, Teoria... após toda esta "loucura" vou fazer um curso de corte e costura!

Beijos! 

Acabou-se o que É doce...


Caríssim@s!
Como estão?
Ontem encerrou minha atividade "extracurricular", a melhor dos últimos tempos!
Fiquei quase uma semana em Companhia das Bruxinhas + Amadas da Rua das Feiticeiras! Lara e Íris... enquanto a Bruxa-Mor alçava voos pelo Norte do País! Risos!
Não posso deixar de mencionar a Pri... "fiel escudeira" e um doce se Menina!
Queridíssimas, não vejo a hora da nossa festa no dia 31 de outubro!!!! Me aguarde!
Beijos bacanas!

===
No mais... segunda, de volta à banalidade da vida.
Cansada.
Correndo contra o relógio, que pra me atrapalhar me tirou 1h... (horário de verão engana!)
Pretensa data de defesa marcada.
...
Preciso e quero pensar na minha vida pós-dissertação URGENTEMENTE!


Dani Felix

 

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

A nostalgia




... é um sentimento que surge a partir da sensação de não poder mais reviver certos momentos da vida (cf. Wikipedia).
Diferentemente da saudade, a nostalgia traduz algo que não pode mais ser reconstituído, reconstruído ou vivenciado, por mais que se queira.
É parte daquele instante que não volta mais.
Sim, estou neste estado de espírito.
Uma sensação de vazio, de solidão, de saudade, uma vontade de querer voltar no tempo e fazer diferente.
Sei que não é possível, por isso me refugio nas palavras... 


Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.

Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge.

Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram.

Virei-me sobre a minha própria experiência, e contemplei-a.
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.

Ó meu Deus, isto é minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera...



Noções - Cecília Meireles


Beijos,
Dani Felix