sexta-feira, 9 de junho de 2023

[COLETIVO DE VÍTIMAS CES-UC/PT] 1a CARTA ABERTA

[REPLICANDO A ÍNTEGRA AQUI]


NÃO É DIFAMAÇÃO, NEM É VINGANÇA. SEMPRE FOI ASSÉDIO: 



CARTA ABERTA AO CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA/PT 


Somos um Coletivo Internacional de Mulheres, hoje em diferentes lugares e posições, que têm, ou tiveram em algum momento, um vínculo com o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, exercendo funções dentro de equipas de investigação dirigidas por Boaventura de Sousa Santos. Nossas experiências dizem respeito ao período entre 2000 e 2019. 

Somos Mulheres de áreas diversas, com perfis individuais distintos, que partilham uma experiência de trauma resultante de um padrão abusivo na relação de trabalho com Boaventura Sousa Santos ou pessoas com autoridade legitimada por ele.

As nossas histórias são diferentes, a forma como lidamos com a dor também. Encontramo-nos em diferentes momentos de cura. Algumas de nós já tinham trabalhado o trauma, outras estavam a fazê-lo, outras estão a começar a aceitar que a violência vivida tem um nome. Todas estivemos nos últimos dias remexendo camadas profundas de dor que estiveram silenciadas por muitos anos.

O abuso não é sempre fácil de identificar. Nos momentos em que partilhámos com outras pessoas as violências vividas, encontrámos uma reiterada normalização das más práticas ou a ideia da sua inevitabilidade em relações de hierarquia entre homens e mulheres. No caso em questão, entre um homem no mais alto patamar da carreira acadêmica e mulheres em diferentes níveis de precariedade e vulnerabilidade.

Temos diferentes histórias e necessidades. Temos vozes individuais, que foram silenciadas. Algumas de nós precisam de muito tempo para processar o que viveram. Partilhamos a urgência de quebrar o nosso silêncio e legitimar as vozes de quem teve a coragem de denunciar publicamente um padrão de violência que resulta dos processos de validação académicos patriarcais; a profunda convicção de que é necessário construir outra realidade, dentro e fora das universidades e centros de investigação, e que o CES tem condições para dar o exemplo, mas não pode seguir em frente sem reconhecer o passado de abusos, sem assegurar que a verdade é abordada de frente e sem dar garantias contundentes de não repetição.

Neste momento, estamos organizadas como um Coletivo de Vítimas. Entendemos que é preciso haver um espaço seguro que possa acolher pessoas que sofreram as violações e outras formas de violência que estão sendo denunciadas, ajudar num processo de cura coletivo e discutir estratégias que atendam às necessidades das mulheres, nas suas diferenças. Colocamo-nos à disposição de outras mulheres, como nós, afetadas por esses abusos sistemáticos e que necessitem de acolhimento e escuta sem julgamentos. 

Queremos que nossas histórias, com as narrativas de violência que sofremos, sejam ouvidas. Os abusos que sofremos, para além do trauma, tiveram sérios impactos no desenvolvimento das nossas carreiras. Estamos, há anos, gerindo por conta própria os danos emocionais e materiais dessa relação laboral.

Com a nossa experiência vivida e o farto material probatório que estamos organizando, queremos oferecer evidências para que possa haver investigação séria, que resulte na devida responsabilização. Reunimos testemunhos e provas que corroboram as práticas descritas no artigo “As paredes falaram quando mais ninguém podia”, nomeadamente exemplos de extrativismo intelectual (apropriação do trabalho intelectual de assistentes de investigação, sem o devido reconhecimento de autoria e remuneração); assédio sexual, com retaliação e assédio moral em decorrência da negativa ao avanço sexual; e reprodução e manutenção de ambiente tóxico nas equipas de trabalho, por parte de Boaventura de Sousa Santos.

Temos, ainda, evidências de um padrão de discriminação de género, que desgasta emocionalmente e funciona como bloqueio continuado ao avanço na carreira e ao crescimento profissional de mulheres investigadoras. A sobrecarga das mulheres com tarefas administrativas, de gestão de projetos e gestão emocional; o desvio de função do trabalho de investigadoras que ficaram consumidas atendendo demandas extras excessivas, a depreciação do trabalho desenvolvido por mulheres e as dificuldades colocadas à criação de maior autonomia ou construção de parcerias independentes com outros/as investigadores/as foram práticas reiteradas, que compõem o amplo panorama de abusos sofridos pelas mulheres, e devem ser também investigadas.

Nossa organização em um Coletivo mostra que não são casos isolados e que não se trata de “vingança”. Entendemos que há um padrão sistemático de abusos que, ao longo dos anos, tem afetado desproporcionalmente as mulheres. É necessário que a investigação dos casos seja segura e garanta às vítimas sigilo e um espaço de escuta e acolhimento em que possam testemunhar sem medo de retaliações. Por essa razão, consideramos absolutamente necessário que a Comissão de Investigação do caso seja totalmente independente e imparcial em relação ao CES, que sejam criados mecanismos para recebimento de outras denúncias e materiais probatórios e que seja dada garantia absoluta de sigilo às mulheres que queiram denunciar ou juntar provas a esse processo. 

Perguntamos: Se mais mulheres quiserem denunciar e contar suas histórias de abuso, como a investigação em curso pretende proceder? Qual o caminho para oferecer testemunhos e outras provas ao caso que está sendo investigado? Que garantias estão asseguradas para que as mulheres possam contar suas histórias em segurança? 

Para começar um processo de mudança, é preciso mudar o padrão de tratamento desses casos, colocando a defesa, proteção e cuidado das vítimas no centro. Se conseguimos sobreviver a esses danos, que sirva para estimular mudança e que mais nenhuma mulher passe pelo que passamos.

 

Se você também foi afetada pelas práticas abusivas de Boaventura de Sousa Santos e precisa de um espaço seguro para partilhar sua história, conte conosco. Escreva-nos para o e-mail: querocontarminhahistoriaem23@gmail.com.

 

Do Brasil para Portugal, 17 de abril de 2023.

 

 

Daniela Felix

Rep. Legal do Coletivo de Vítimas

Advogada Feminista

Nenhum comentário: