domingo, 21 de abril de 2013

Ato Contra a Tortura nos Presídios em SC!

Quando? Terça, dia 23/04, às 13:30
Onde? Praça em Frente ao Tribunal de Justiça da Capital!

Você sabia que depois de 4 meses de investigação o inquérito policial dos casos de tortura de novembro não deram em nada?!
Isso mesmo, 4 meses, e o inquérito rebaixa os crimes de tortura para lesão corporal! 4 meses e ninguém foi indiciado!
Mas, isso não é novidade. O fatídico caso de tortura de 2008, também em São Pedro de Alcântara, que chocou a opinião pública nacional com um vídeo que registrava agentes penitenciários afogando presos num vaso sanitário até hoje não foi totalmente apurado!

É hora de dizer chega! A tortura é uma realidade em Santa Catarina, mais, é uma POLÍTICA!

Nós não esqueceremos e não deixaremos ninguém esquecer!

A solidariedade é a nossa força! Chega de Opressão!


Fonte: Frente Antiprisional Santa Catarina

terça-feira, 16 de abril de 2013

Como assim "cada um analisa de acordo com seu convencimento"?, por Lenio Luiz Streck

Comp@s!
Excelente análise crítica de Lênio Streck, a partir da entrevista de Guilherme de Souza NUCCI, ao Consultor Jurídico (e publicada aqui no Blog).
Como havia dito, tinha discordâncias com o que Nucci expressou, mas muito me agradou que algumas das minhas críticas foi levantada pelo Lênio (longe da profundidade analítica de Lênio, mas é um indicativo que estou no caminho!)
Artigo de leitura OBRIGATÓRIA!
Abraços!
 ***
Há um ditado popular que diz “mirou no padre e acertou na Igreja”, o que no direito poderia ser tido como aberratio ictus. Pois lendo a entrevista do magistrado Guilherme Nucci na ConJur criticando o poder investigatório do Ministério Público, ficou-me a nítida sensação de que o autor que mais vende livros de direito penal e processual do Brasil atirou no padre e errou; mas também não acertou na igreja. Sorte da vítima.
Explico: Nucci concedeu longa entrevista dizendo que o MP não tem poderes investigatórios. Negou, inclusive, três vezes (não, não e não!). E isso gerou uma enorme polêmica entre os leitores do ConJur. De imediato, delegados, promotores e advogados se engalfinharam discutindo sobre o que dissera Nucci. Cada um dos leitores defendendo, como em um Fla-Flu (ou Gre-Nal) o seu ponto de vista.
Não vou entrar de novo nessa discussão sobre o Poder Investigatório do MP. Sobre isso já me manifestei quando escrevi, aqui no ConJur, o texto a PEC da insensatez. Tudo o que penso sobre isso está ali naquele texto. Não vou ficar discutindo coisas como “na Inglaterra o MP não tem poderes investigatórios”.
Primeiro, que importância teria isso? Mas, se tem, por que então não verificar a veracidade da informação? Já adianto: o argumento de que na Inglaterra o MP não tem poderes investigatórios é tão falso quanto uma moeda de 6 centavos com a esfinge do Visconde de Sabugosa. Mas não é disso que tratarei.
Então, por favor, não quero polemizar de novo sobre a PEC 37. Quero pegar o que Nucci disse e que ninguém – mas ninguém mesmo – contestou. Passou in albis. Sorte que não prescreveu, porque estou aqui, no prazo dos “embargos com efeitos infringentes” (argh) buscando o restabelecimento da questão de fundo, isto é “o busílis da questão”.
Disse Nucci algo que deveria deixar todos de orelhas em pé. E o que foi isso? Trata-se de algo que ele vem repetindo à sociedade e à saciedade, de que o-juiz-tem-o-poder-de-livre-apreciação-da-prova (verbis na entrevista: “Cada um analisa de acordo com o seu convencimento, de acordo com sua convicção própria. O sistema processual penal permite que o juiz forme a sua convicção livremente”). Bingo. Este é o ponto. Eis o álibi teórico-retórico: com a livre apreciação, não há erro; não há autoritarismo; há, tão-somente, um engano na “escolha”... De qualquer sorte, enquanto delegados, promotores e advogados (lato sensu – as carreiras são tantas) ficam se digladiando, o solipsismo judicial corre frouxo (diria assim que, enquanto Nucci concedia a entrevista, centenas de prisões foram decretadas de ofício e centenas de processos foram decididos por livre convicção!).
Tenho alertado à comunidade jurídica de há muito sobre algumas coisas. O Código de Processo Civil está contaminado na origem pelo instrumentalismo processual, que vem lá do século XIX (é o fantasma do velho Büllow, que parece que não quer largar o pé da comunidade jurídica). Consequência disso? Olhem ao redor. Caos. Escopos processuais. Livre convencimento. Embargos declaratórios. Ah: não esqueçamos que o projeto do novo CPC dá poderes ainda maiores ao juiz, na parte das cautelares, por exemplo.
Bom, tão caótico é o sistema que o establishment reagiu em 2004 e implementou as súmulas vinculantes e a repercussão geral. E vai apertar mais ainda o ferrolho. É a adaptação darwiniana que o sistema faz de si mesmo. Se todos têm livre convencimento, ninguém tem. E assim forma-se o caos (espécie de estado de natureza hermenêutico), resolvido pelos ferrolhos instrumentalistas. Se alguém tem dúvidas, tente passar um recurso para os tribunais superiores.
No processo penal o velho inquisitivismo continua aí. Forte. Rijo. É o presidencialismo processual. O juiz tem poderes de ofício. Ele decreta prisão de oficio. Ele não obedece ao artigo 212 do CPP (aliás, o primeiro juiz que escreveu dizendo que os juízes não precisavam obedecer ao artigo 212 do CPP foi... sabem quem? Justamente Guilherme Nucci; pior: ele ganhou a batalha, porque o STJ e o próprio STF – este em um julgado - dizem que a não obediência ao artigo 212, que é uma regra procedimental que assegura o princípio acusatório, é tão somente uma nulidade relativa). E assim a coisa vai. Quando estão discutindo a PEC 37, muitos juristas esquecem desses detalhes. Observe-se: minhas críticas – já antigas – não se dirigem aos juízes (aliás, sou um ardoroso defensor da jurisdição constitucional – o que critico é o ativismo e o decisionismo); e, fundamentalmente, minhas críticas se dirigem ao modelo inquisitório que não conseguimos superar. Simples, pois.
Claro que o velho inquisitivismo vem acompanhado daquilo que ficou escondido na entrevista de Nucci. Trata-se do poder de livre apreciação da prova, o que implica a serôdia possibilidade de buscar a “verdade real” (sic). Desafio – e não é de hoje - a que alguém me prove a viabilidade da tal “verdade real” no plano filosófico. Ora, de que adianta termos atingido a democracia se, na hora da decisão de um processo criminal, em que estão envolvidos os mais altos direitos humanos fundamentais, o decisor pode apreciar livremente a prova, “buscando a verdade que ele considera a ‘real’”?
Pior: Nucci não está sozinho; o projeto do novo Código de Processo Penal continua com esse vício típico de um paradigma ultrapassado. Alguém se lembra da algumas passagens do julgamento da AP 470, quando se dizia, com base no Malatesta (que era um tremendo de inquisitivista e solipsista), que o ordinário se presume e só o extraordinário se prova? Nem é necessário dizer mais. Mas o que me impressionou foi o silêncio eloquente da comunidade jurídica. Malatesta vive.
No que tange especificamente ao problema da gestão da prova, é de se consignar que boa parte da doutrina brasileira se perde na definição dos modelos de apreciação da prova (quais sejam: o modelo da íntima convicção; o modelo da prova legal; e o modelo da livre apreciação da prova), como se o problema estivesse apenas em optar por um deles, mas não em superá-los.
Há certo consenso no sentido de que o modelo da livre apreciação da prova seria “mais democrático” (sic) que o modelo da prova legal, uma vez que, nesse último, o juiz e as partes ficariam reféns de uma hierarquia valorativa da prova estipulada pela própria lei – pelo legislador, portanto – enquanto, no sistema do livre convencimento, há uma maior liberdade de conformação por parte do juiz que pode “adequar” (sic) a avaliação da prova às circunstâncias concretas do caso. Ora, ora. E mais um “ora”. Este tipo de comparação me faz lembrar que o absolutismo foi melhor que o medievo... Pois é. Claro que foi. Afinal, sair da condição de servo da gleba para a de súdito foi um avanço. Mas isso não quer dizer que o “absolutismo foi bom”. Isto é, dizer que a livre apreciação é melhor que o modelo da prova legal é, no mínimo, falta de visão paradigmática (e, portanto, histórica). Vejam: Aqui, nesta parte, não estou falando sobre o que disse Nucci, e, sim, sobre o que parcela da doutrina entende sobre gestão da prova. Mas tem a ver, por óbvio.
Alguém já se deu conta – e isso está nítido na entrevista de Nucci – que a livre apreciação da prova está ligada ao uso de provas indiciárias? Os advogados de terrae brasilis já se deram conta disso? Ora, não deixa de ser instigante (e intrigante) o fato de que seja exatamente a livre apreciação da prova o argumento utilizado por inúmeras decisões-para-justificar-a-condenação com base em... provas colhidas durante o inquérito policial.
Portanto, o problema da gestão da prova deve ir além de uma simples opção por um dos modelos citados acima. Aliás, ele deve ser pensado no contexto de um processo democraticamente gerido, o que implica pensar os limites daquele que figura como o titular o impulso oficial: o juiz. Pois não há democracia onde haja poder ilimitado. E isso é assim desde o primeiro constitucionalismo. Mas nada disso aparece na fala de Nucci.
Sigo, para dizer algo chato. Afinal, em um mundo em que cresce dia a dia a indústria da cultura simplificadora, falar de algo mais sofisticado sempre pode parecer chatice ou pedantismo. Quero dizer que esse problema estrutural decorre de outro problema paradigmático: o atrelamento da concepção de direito (ainda dominante) aos paradigmas aristotélico-tomista e da filosofia da consciência (na verdade, de sua vulgata, o voluntarismo). Assim, se, de um lado, acredita-se na possibilidade da busca da verdade real (sic) – como se existissem essências (sim, existem ainda juristas das mais variadas espécies que acreditam nisso!); ao mesmo tempo, tomam para si a condução da prova no processo, como se a produção da prova pudesse ser gerida a partir de sua consciência (falo em sentido de paradigma filosófico, embora o que ocorra na prática cotidiana seja mesmo uma vulgata da filosofia da consciência). Nem vou falar, aqui, do discricionarismo... (remeto o leitor ao meu Verdade e Consenso). Por tudo isso, o sistema processual penal é (ainda muito) autoritário.
O que Nucci não discute é essa questão da origem do inquisitisvimo e da livre apreciação da prova. Este é o ponto. De que adianta falar da investigação (com ou sem MP), se, para ele, a prova é examinada “a partir do seu livre sentir”? E, por trás disso, está um problema de paradigmas filosóficos. Enquanto os juristas brasileiros não se derem conta disso, vamos continuar a andar em círculos. E nos surpreendendo com a ressureição, de tempos em tempos, de “obras geniais” como a de Malatesta. Para dizer o mínimo.
Volta-se, sempre, ao lugar do começo: o problema da democracia e da (necessária) limitação do poder. Discricionariedades, arbitrariedades, inquisitorialidades, positivismo jurídico: tudo está entrelaçado. Consequentemente, é possível afirmar que o sistema acusatório é o modo pelo qual a aplicação igualitária do direito penal penetra no direito processual penal. Pelo sistema acusatório, ganha terreno aquilo que Dworkin chama de fairness. Mais do que isso, é a porta de entrada da democracia.
É o modo pelo qual se garante que não existe um “dono da prova”; é o modo pelo qual se tem a garantia de que o Estado cuida de modo igualitário da aplicação da lei; enfim, é o locus onde o poder persecutório do Estado é exercido de um modo, democraticamente, limitado e equalizado. Com Ministério Pùblico, polícia e advogados. No fundo, é possível dizer que o sistema acusatório é a recepção do paradigma que proporcionou a grande revolução no campo da filosofia: o giro linguístico-ontológico, pelo qual os sentidos não mais se dão pela consciência do sujeito e, sim, pela intersubjetividade, que ocorre na linguagem. Sendo mais simples: trata-se do fenômeno da invasão da filosofia pela linguagem.
Em outras palavras: o sistema acusatório somente assume relevância paradigmática nesse contexto. Se nele colocarmos o “livre convencimento”, retornaremos ao inquisitorialismo (peço desculpas, mas tenho que dizer isso; não é por que eu quero que seja assim; não é implicância minha que o inquisitivismo esteja ligado a um paradigma filosófico ultrapassado; isso é assim não porque simplesmente é, mas, sim, porque há uma larga tradição filosófica que define o que é um paradigma).

Numa palavra 
Como disse, minha preocupação maior tem sido com a democracia. E com a gestão da prova. E com a necessidade de superarmos a tal livre apreciação da prova, seja o nome que a ela se dê (por exemplo, não adianta acrescentar a palavra “motivado” ou “motivada” para resolver um problema que é de fundo, e não de ornamento). Concordo com o ilustre entrevistado no sentido de que, efetivamente, essa questão da “investigação por parte do MP” está sendo tratada de forma maniqueísta. Não sei bem por quem. Mas que está, isso está.
Por exemplo, na entrevista tem-se a impressão que o Ministério Público quer investigar sozinho. Que só ele quer investigar. E sabemos todos que não é isso que o MP pretende. Aliás, poderíamos incluir no entremeio dessa discussão essa problemática da “livre apreciação”. Quem sabe, fazemos um “pacote significante” para aproveitar as energias que estão sendo despendidas no plano da investigação (ou de quem deve investigar)... Com bem disse outro dia o promotor de Justiça do DF Antonio Suxberger, “o modelo constitucional hoje assegura à investigação criminal um caráter usualmente policial, mas não exclusivamente policial. Auditorias internas de órgãos públicos, comissões parlamentares de inquérito, inquéritos civis que apuram improbidade administrativa, procedimentos apuratórios do Ministério Público, comunicações de operações financeiras suspeitas pelo Coaf e pelo Bacen etc – são diversas as possibilidades de apuração da prática criminosa que cumprem a finalidade de uma investigação criminal.” Eu acrescentaria as inúmeras apurações das corregedorias e dos diversos setores da administração nos seus diversos níveis. Efetivamente, a estrutura da administração pública de terrae brasilis é bem complexa, pois não?
Pronto. Para além da discussão acerca da “livre apreciação da prova”, ovo da serpente da manutenção de um sistema de gestão da prova ultrapassado, tem-se que a complexidade vence a dicotomia e o maniqueísmo.

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Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 15 de abril de 2013

"Discussão sobre investigação pelo MP é maniqueísta", por Guilherme de Souza Nucci

Companheir@s!!!
Excelente entrevista de GUILHERME SOUZA NUCCI, grande teórico do Direito Penal e Processual Penal, sem dúvida alguma(!), sobre temas polêmicos do Sistema de Justiça Criminal.
Embora tenha algumas discordâncias (e quem sou eu pra discordar?!) e críticas, suas análises tocam questões centrais que devem ser enfrentadas por TOD@S, indistintamente... estam@s tod@s fazendo muito mal o nosso dever de casa!
E sobre o poder investigatório do MP - originado pela PEC 37 -, debate-se a retirada do Poder Investigatório do MP, no qual eu concordo que se deve manter o direito, vez que ele precisa produzir provas na Ação Penal, enquanto parte do processo e já que muitos Inquéritos Policiais são péssimos e, via de regra, ausentes a ampla defesa e o contraditório.

Por outro lado, temos de colocar em debate a ampliação dos poderes de investigação das Polícias Militares, que não são polícias judiciárias, ou seja, não tem a função de produção de provas, e corre à revelia de tod@s!
Ampliar o Sistema Inquisitório é TEMERÁRIO e isso vem sendo feito continuamente e, pior, se utilizando como disse NUCCI, com pesquisas de opinião entre ser "a favor" ou "contra".  
Vamos ampliar este debate e, no mínimo, saber o pano de fundo da Política Criminal em questão.
Não esqueçamos JAMAIS os tristes tempos da DITADURA... as polícias e o exército tinham poderes irrestritos de investigação. 
E não estou aqui defendendo o MP e achando que é a melhor instituição do MUNDO [e não é], aliás, em muitos estados seus quadros são muito mais reacionários que o da própria polícia, mas este é um outro debate que precisa ser feito!
Ainda, muito me agrada ler seus posicionamentos acerca dos regimes de cumprimento e a inversão que se opera no Sistema Carcerário brasileiro... se não há vagas no semi-aberto, solta o Cidadão! O Cidadão não pode ser punido pela inépcia (e inércia) do Estado! 
TENHO DITO.

Boa Leitura!

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O Código Penal tipifica uma quantidade quase infinita de delitos, mas nas varas e tribunais do país, os juízes julgam praticamente seis crimes: tráfico, homicídio, roubo, furto, estelionato e estupro. E metade é tráfico. Enquanto legisladores e juristas discutem a ampliação ainda maior dos tipos penais, o juiz Guilherme de Souza Nucci aponta para o que está à vista de todos que não querem enxergar: não é mudando a lei que se muda o mundo.
Quando se trata de matéria criminal, é aconselhável prestar atenção no que Nucci fala. Professor de Direito Penal da PUC-SP, autor de 29 livros sobre os mais diferentes aspectos da matéria, ele se tornou referência no assunto e um dos doutrinadores mais citados sempre que está em julgamento um caso criminal. 
Quem acompanhou o julgamento da Ação Penal 470 pelo Supremo Tribunal Federal ouviu seu nome e suas teses serem citadas tanto pelo procurador-geral na acusação quanto pelos advogados de defesa e pelos ministros, durante os debates do julgamento. 
Em entrevista à revista Consultor Jurídico, Nucci revelou que, no julgamento do mensalão, a situação se inverteu: ele é que esteve atento aos debates para tirar suas próprias lições. “O julgamento do mensalão trouxe para o Brasil um avanço muito grande em nível penal porque pela primeira vez o STF fixou uma pena em caráter originário pelos onze ministros. É uma coisa histórica”, analisa.
Uma das principais lições que tirou dali, conta, foi quanto à definição de que as atenuantes e agravantes afetam a pena-base em um sexto. Ele explica que já era uma jurisprudência majoritária, até porque o Código Penal usa com frequência a medida “um sexto”. Mas não há definição expressa quanto a atenuantes e agravantes. “Agora temos um parâmetro.”
Outra lição que tirou do mensalão foi quanto ao prejuízo causado ao país pela prerrogativa de foro por função. Pela regra constitucional, membros do governo federal e do Congresso Nacional devem ser julgados originariamente pelo Supremo Tribunal Federal. Guilherme Nucci é contra. Acha que o sistema é antidemocrático. “Não vejo nenhum sentido em qualquer autoridade ter direito a um foro específico, especial”, afirma.
Nucci não esconde sua opinião sobre assuntos polêmicos. Problema estrutural tanto da área penal quanto na de segurança pública, a superlotação dos presídios é motivo de preocupação para o juiz. Tema que está para ser definido pelo Supremo é o que fazer com o preso que, do regime fechado, progride para o semiaberto, mas não encontra vagas. Alguns entendem que deve continuar preso. Outros, que vá para o regime aberto diretamente. Guilherme Nucci não tem dúvidas: deve ir para o aberto diretamente. “Não tem vaga, mas o que o preso tem com isso? O que é que o indivíduo tem com a inépcia estatal?”, diz. Ele acredita que o juiz não deve se preocupar com o problema da falta de vagas, pois essa é uma questão para o Executivo, o responsável pela administração penitenciária, resolver. “Eu sou juiz, não tenho que resolver isso, tenho é que aplicar a lei. E a lei fala que ele tem de ir para o semiaberto, então ele tem de ir para fora da cadeia.”
Sobre outro tema polêmico, se o Ministério Público tem poder de investigação em matéria penal, ele também tem opinião formada: "Não, não e não". Guilherme Nucci é juiz há 25 anos. Atualmente, é juiz convocado no Tribunal de Justiça de São Paulo. Grande especialista em Direito Processual Penal, é livre-docente no tema pela PUC-SP. Também é professor da matéria na Faculdade de Direito da PUC. Mas, aos 51 anos, sua profusão de quase 30 livros não se limita a Processo Penal, como bem demonstra uma breve relação dos seus títulos: Individualização da Pena, Código de Processo Penal Comentado, Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais, Provas no Processo Penal e Crimes Contra a Dignidade Sexual.

Leia abaixo a entrevista com o juiz Guilherme de Souza Nucci:

ConJur — O Ministério Público pode investigar?
Guilherme Nucci — Sozinho, não. O próprio promotor abre investigação no gabinete, colhe tudo, não dá satisfação para ninguém, e denuncia. Não. Não e não mesmo. As pessoas estão confundindo as coisas. Ninguém quer privar o Ministério Público de fazer seu papel constitucional. Estão divulgando essa questão de uma forma maniqueísta: pode ou não pode investigar? O MP é bom ou é mau? Isso não existe, é infantil. Ninguém é criança, para achar que é o legal ou o não-legal, o bacana ou o não-bacana. O que a gente tem de pensar é o seguinte: o Ministério Público é o controlador da Polícia Judiciária. Está na Constituição Federal. A Polícia Judiciária, também de acordo com a Constituição Federal, é quem tem a atribuição da investigação criminal.

ConJur — Privativamente, não é? A função dela é só essa.
Guilherme Nucci — A polícia existe para isso. Delegados, investigadores, detetives, agentes da Polícia Federal são pessoas pagas para investigar. E aí o que se diz? O MP não confia nesse povo, que é tudo corrupto, e nós vamos investigar sozinhos. Mas e as instituições são jogadas às traças assim? Eu não concordo. A atividade investigatória foi dada, no Brasil, ao delegado de polícia, concursado, bacharel em Direito. Não é um xerife, um sujeito da cidade que é bacana e que a gente elegeu xerife e que portanto não entende nada de Direito. Nossa estrutura é concursada, democrática, de igual para igual. Não existe isso de “ele é delegado, então ele é pior; eu sou promotor, sou melhor”. Tem corrupção? Então vamos em cima dela, vamos limpar, fazer o que for necessário. Agora, não podemos dizer que, porque a polícia tem uma banda corrupta, devemos tirar a atribuição dela de investigar e passar para outro órgão.

ConJur — Como se no Ministério Público não tivesse corrupção.
Guilherme Nucci — É o único imaculado do mundo? Não. Polícia investiga, MP acusa, juiz julga. MP investiga? Lógico. Junto com a polícia. A polícia faz o trabalho dela e o MP em cima, pede mais provas, requisita diligência, vai junto. Não tem problema o promotor fazer essas coisas. Ele deve fazer.

ConJur — O que não pode é ele fazer, sozinho, a investigação, é isso?
Guilherme Nucci — É. Dizer “eu quero fazer sozinho”. Por quê? Não registrar o que faz? Tenho ouvido dizer de muitas pessoas, tanto investigados quanto advogados, que contam: “Fiquei sabendo que eu estou sendo investigado”. Imagine você, ficar sabendo porque um vizinho seu foi ouvido. Aí ele chega pra você e fala: “Pedro, você está devendo alguma coisa? Aconteceu alguma coisa?”. “Não, por quê?”. “Porque um promotor me chamou ontem”. Aí você contata um advogado amigo seu e ele vai lá à Promotoria e vê se o promotor te mostra o que ele está fazendo. “Protocolado. Interno. É meu”. Veja, não é inquérito, portanto não está previsto em lei. Não tem órgão fiscalizador, não tem juiz, não tem procurador, ninguém acima dele.

ConJur — Só ele, de ofício, sem dar satisfações
Guilherme Nucci — Ele faz o que ele quiser. Ele requisita informações a seu respeito, ou testemunhas. Depois joga uma denúncia. Do nada. Mas cadê a legalidade?! O Supremo já decidiu: tem procuração, pode acompanhar qualquer inquérito, quanto mais protocolado na Promotoria. Então vamos jogar o jogo: quer investigar? Quero. Sozinho? É. Então passa uma lei no Congresso. No mínimo. O ponto é: se o MP quer investigar, tem de editar uma lei federal dizendo como é que vai ser essa investigação. Quem fiscaliza, quem investiga, de que forma, qual procedimento etc. para eu poder entrar com Habeas Corpus, se necessário. O que está errado, hoje, é o MP fazer tudo sozinho. Eu deixo isso bem claro porque cada vez que a gente vai para uma discussão vem o lado emocional. Não estamos vendo o mérito e o demérito da instituição. Estamos falando de um ponto só: o MP não pode investigar sozinho. Ponto final.

ConJur — Em matéria penal, deixando a política de lado, qual a importância do julgamento do mensalão?
Guilherme Nucci — O julgamento do mensalão trouxe para o Brasil um avanço muito grande em nível penal porque pela primeira vez o Supremo Tribunal Federal fixou uma pena em caráter originário pelos onze ministros. É uma coisa histórica. Estamos acostumados a ver o STF julgar recursos, Habeas Corpus, mas não fixando pena, como se fosse um juiz de primeiro grau. E dali tiramos várias lições.

ConJur — Que tipo de lição?
Guilherme Nucci — Coisas controversas, como fixar a pena-base, ou o que levar em consideração, concretamente, para essa escolha. Quanto vale um atenuante, quanto vale um agravante. O Supremo teve de passar por todas essas coisas.

ConJur — Consegue citar alguma dessas lições que tenha considerado mais importante?
Guilherme Nucci — O Supremo entendeu que os agravantes e atenuantes afetam a pena em um sexto. Já era uma jurisprudência majoritária, mas cada juiz tem um critério, porque o Código Penal não fixa.

ConJur — Qual a mudança, então?
Guilherme Nucci — A gente não tinha parâmetro. Tem juiz que entende que é um oitavo, outros entendem que deve afetar em um terço. Alguns aplicam um critério numérico, como seis meses ou um mês.

ConJur — É possível dizer que a interpretação do Supremo no julgamento do mensalão permitiu certa flexibilização da valoração das provas? 
Guilherme Nucci — Não vejo assim. O que eu vejo é que o Supremo teve de agir como um juiz age, de valorar a prova pela primeira vez, sem filtragem de nenhum órgão judiciário antes. A prova indiciária está prevista em lei. Os indícios são provas indiretas. O que o ministro deixou claro é que estamos usando, no caso ali, a prova indiciária, que é usada também para outros casos, num roubo simples, num furto. E que a gente não tem necessariamente de usar para condenar só a prova direta — aquela em que pessoa que viu o crime diz: “Foi assim”. Então, na verdade não houve flexibilização.

ConJur — O senhor acha que o caso trouxe à tona aquele sentimento de punir os réus por causa dos cargos que ocupam ou pelo que representam na sociedade?
Guilherme Nucci — Não acredito nisso, sinceramente. Como é um julgamento envolvendo personalidades importantes da República, geralmente baixa esse espírito nas pessoas ligadas aos réus, até mesmo nos seus defensores, dizendo: “Não tem prova; os juízes estão julgando de maneira política”. Mas não creio nisso, sinceramente. Ali é um conjunto de provas, cada um analisa de acordo com o seu convencimento, de acordo com sua convicção própria. O sistema processual penal permite que o juiz forme a sua convicção livremente. Não li os autos, então não posso dizer se há prova do crime ou não, mas não acredito que os ministros tenham tido motivação política no julgamento. Pelo que acompanho, os julgamentos do STF, pelo menos em matéria penal, são sempre bastante técnicos.

ConJur — O fato de se ter uma corte suprema julgando uma ação penal originária influencia nessa conta?
Guilherme Nucci — Na verdade, isso envolve o problema da prerrogativa de função, ou do foro privilegiado. Sou contra. Não vejo nenhum sentido em qualquer autoridade ter direito a um foro específico, especial. Acho que deputado, senador, juiz, promotor, seja quem for, tem que ser julgado por um juiz de primeiro grau. Daí ele tem direito a recurso para o tribunal, depois para o Superior Tribunal de Justiça e, se for o caso, para o Supremo. Como qualquer réu.

ConJur — Mas isso não seria uma garantia social, por causa do cargo que a pessoa com prerrogativa de foro exerce?
Guilherme Nucci — Ora, quem vai para a cadeia não é o cargo, é a pessoa, não é? Em matéria penal não existe julgamento de cargo, existe o julgamento da pessoa, de quem cometeu o crime. Não vejo nenhuma subversão de hierarquia. E vamos ponderar: se um presidente da República, um ministro, um deputado pode se sentar no primeiro grau na Justiça Trabalhista, na Justiça Civil, porque na esfera penal a questão não pode ser resolvida pelo primeiro grau?

ConJur — Passa pela questão de que talvez o juiz de primeiro grau tenha menos qualidade técnica, e por isso alguém com um cargo de representação na República deva ser julgado por uma corte qualificada?
Guilherme Nucci — Não tem a ver com o fato de o Supremo julgar melhor ou pior. Tem a ver com o fato de que todos os brasileiros são iguais. Por isso o correto é que um juiz de primeiro grau tivesse julgado o mensalão, não o Supremo. 

ConJur — Alguns réus tentaram.
Guilherme Nucci — Sim, mas veja: por que no mensalão houve grita? Isso num caso de repercussão vira um problema, mas quando não tem, ninguém fala. Mas se quer mudar isso, é simples: muda a lei. Quer desmembrar? Vai lá no Congresso e muda a lei e diz que acabou a conexão quando há uma pessoa que não tem foro privilegiado.

ConJur — Mas não tem aquela questão de que, com o foro especial, o réu tem menos possibilidade de recurso?
Guilherme Nucci — Essa é uma questão interessante que meus alunos vivem me perguntando. Todo réu tem direito ao duplo grau de jurisdição, mas acontece que todo princípio constitucional tem sua exceção. E se você quer um benefício que outros não têm, deve abrir mão de alguma coisa. Os detentores de foro privilegiado, quando fizeram a Constituição Federal, já sabiam que qualquer deputado, senador, presidente, ministro ia ser julgado pela mais alta corte de Justiça e que dali não teriam para quem recorrer. E toparam. É um jogo político. E todo mundo sabe as regras do jogo, ninguém ali é criança.

ConJur — E agora querem fazer o jogo de novo.
Guilherme Nucci — Agora que foram julgados, depois de 25 anos de Constituição, alguém vem dizer assim: “Eu quero duplo grau. Qualquer réu aí de primeiro grau tem direito a recorrer, por que eu não?” Muito simples: porque o coitado do assaltante, que roubou ali na esquina, vai ser julgado por um juiz de primeiro grau — que, para você, que tem foro privilegiado, não serve. Aí, ele vai recorrer para o tribunal; e ele pode chegar ao Supremo, por grau de recurso. Você, não. Você já começou na mais alta instância. Você escolheu esse sistema. As regras estão postas há 25 anos. Reclamar disso agora é sofisma. Só isso.

ConJur — Outro argumento a favor da prerrogativa de foro é para evitar a contaminação política da decisão. Uma crítica muito feita ao Ministério Público é a perseguição a ocupantes de cargos políticos. Aquela mentalidade do “vamos denunciar, é um ‘figurão’”.
Guilherme Nucci — Uma das argumentações realmente é essa: levando para a cúpula eu evito que o julgamento seja contaminado, evito acusações levianas etc. Mas se editássemos uma norma razoável, dizendo que as acusações devem ter tais fundamentos, responsabilizando pessoalmente o autor de uma denúncia leviana, as coisas engrenariam. Poderíamos fazer uma espécie de contrapeso. Tira o foro privilegiado, mas põe uma responsabilidade maior em quem faz a denúncia e em quem a recebe. A razoabilidade é o que deve imperar. O fato de a denúncia ter de ser feita num órgão de cúpula é que existe, naturalmente, uma filtragem maior. É uma realidade.

ConJur — Pune-se demais no Brasil, ou em São Paulo? O que se discute agora, na reforma do Código Penal, por exemplo, é o aumento das penas dos crimes de perigo abstrato, ou aumentar para o tráfico de drogas e aliviar para o uso.
Guilherme Nucci — O levantamento que eu tenho, dos recursos que me chegam, é que a gente só julga seis crimes: tráfico, homicídio, roubo, furto, estelionato e estupro. E metade disso é tráfico. Aí te pergunto: precisamos ter não sei quantos milhares de tipos penais? Não usam. Pune-se demais? Pune-se, nada. Que perigo abstrato é esse que está sendo punido? Pega todos os crimes de perigo abstrato do Código Penal e vê se estão sendo punidos. Aliás, pega todos os crimes de perigo.

ConJur — E que crimes são esses?
Guilherme Nucci — Inundação, naufrágio, incêndio, omissão de socorro, abandono de incapaz, maus tratos, bla bla bla. Bota na mesa, vê quantos estão sendo punidos. Não existe, é mentira. Não tem excesso punitivo. Mas aí, o que eu posso fazer se a sociedade vive com cocaína no bolso e arma na cintura? Pune-se demais? Não. O que eu vejo é um excesso de leis inúteis, que podiam nem existir.

ConJur — Tráfico, por exemplo, que o senhor mencionou, tem uma pena muito pesada?
Guilherme Nucci — Olha, até acho que para o traficante de primeira viagem pode até ser pesado cinco anos. Mas se você pensar no sujeito que pratica tráfico pesado, se organiza, se arma, distribui, é preso com 30 quilos, corrompe, aí tem que punir mesmo. E cinco anos é até pouco. Droga é pesado, corrompe o sistema, fere a saúde pública.

ConJur — Mas existe a demanda.
Guilherme Nucci — Evidente. Concordo plenamente, isso é um problema social grave. Não é só olhar o caráter criminal. Tem quem compre. A celeuma toda não vai ser resolvida só na esfera penal. Mas nisso eu não tenho opinião formada. Não tenho mesmo. Eu acho, sinceramente, que na esfera penal propriamente dita o tráfico tem que ser punido. A única coisa que não concordo é o usuário que não cumpre a pena alternativa não possa ser apenado. Ele foi pego duas vezes fumando maconha e levou duas advertências. Na terceira acontece o quê? Outra advertência? Tinha que ter uma postura mais dura do Estado para esses casos.
Comentário <<< é uma pena o NUCCI não ter um posicionamento claro (ou ao menos não enfrentar aqui) sobre a indústria do tráfico de drogas e a política criminal que colocou as drogas como a "bola da vez", ele mesmo trouxe os dados de que é o crime que mais se pune, ou seja, são elementos que traduzem um modelo muito claro de política >>>.

ConJur — Mas o que acontece é que o usuário é autuado como traficante.
Guilherme Nucci — Assim que saiu a lei eu escrevi isso no meu livro de tóxicos, sobre as leis penais especiais. Disse o seguinte: “Sabe o que vai acontecer com essa história de o usuário não ir mais para a cadeia? Os delegados vão começar a autuar todo mundo por tráfico”. Dito e feito. E por que o delegado vai amenizar? Pega o cara com cinco cigarros de maconha, ele que prove que é usuário. 
Comentário <<< essa prática corriqueira das Polícias serve de argumento, inclusive, pra se manter o poder investigatório do MP, pois um delegado com essa mentalidade nunca irá pedir, por exemplo, um exame de depedência toxicológica do sujeito, ao contrário, quer mesmo que ele seja preso como traficante... >>>  .

ConJur — A coisa se inverte, não é?
Guilherme Nucci — Exatamente. Porque quanto mais você ameniza um lado e carrega o outro, a distorção fica muito grande. Um não vai para a cadeia de jeito nenhum e o outro vai sempre, e o que acontece é que a polícia nunca vai te enquadrar no lado de baixo, porque aí não faria sentido o trabalho dela.
Comentário <<< Por quê não? É justamente essa cultura policial, herdada de regimes de exceção, que precisa ser enfrentada >>> .

ConJur — E no caso dos crimes de tráfico essa inversão tem acontecido com frequência?
Guilherme Nucci — É patente. No TJ julgamos isso aos montes. A polícia autua, o MP acusa e nós temos de desqualificar. No caso da lei do tráfico ficou esquisito porque carregar a droga é tráfico, mas carregar a droga para uso, não. Então o acusado é quem tem de provar o uso para desqualificar o tráfico.

ConJur — Então é a lei que inverte o ônus da prova?
Guilherme Nucci — Exatamente. O tráfico é que tinha que ter a finalidade: “Carregar droga para comercializar”. E aí se não fica provada a intenção de vender, de traficar, cai automaticamente para o uso. Mas hoje, pela lei, se você carrega a droga, mas não consegue provar que é para consumo próprio, é condenado por tráfico.

ConJur — E aí é aquela velha ideia de que a polícia prende e o Judiciário solta.
Guilherme Nucci — Mas essa é velha mesmo. A Justiça não tem o papel de prender. O papel dela é o de soltar também. Não é só um lado. Só que o papel da polícia é o de prender. Ela trabalha para prender. O juiz, não.

ConJur — Mas também existe aquela noção de que o Judiciário brasileiro é pró-réu. O ministro Joaquim Barbosa já falou isso algumas vezes.
Guilherme Nucci — São frases de efeito que mexem com a estrutura para que as pessoas discutam. Vale para uma conversa numa mesa, mas eu não acredito na generalização disso.

ConJur — O preso no regime fechado ganha o direito de progredir, mas não há vagas no semiaberto. Ele deve esperar no fechado ou ir direto para o aberto? 
Guilherme de Souza Nucci — A minha câmara tem duas posições. Uma é dar um prazo para ele passar para o semiaberto. E a segunda posição é, se o juiz der originalmente o semiaberto, aí ele não fica nem um dia a mais no fechado. Porque tem isso também: a sentença é para ele ir para o semiaberto, mas, como não tem vaga, ele vai para o fechado. Isso está completamente errado.

ConJur — E ele passa a ocupar uma vaga no fechado.
Guilherme Nucci — Essa é uma questão absurda. A pergunta que eu sempre faço aos meus alunos: por que não falta vaga no fechado? Não amontoa? Por que não abre a colônia e joga mais um? Por que no semiaberto tem número limitado de vagas e no fechado não? São coisas engraçadas, não é? Então, amontoa todo mundo na colônia. “Ah, mas aí vira bagunça.” O que significa então que o fechado vira bagunça e o Executivo está sabendo que vira bagunça, e que está uma bagunça. Ou vai me dizer que o fechado está totalmente organizado e nunca falta vaga? Então porque o Estado não investe no semiaberto? Por que o estado de São Paulo, especialmente São Paulo, não tem nenhuma casa de albergado? O regime aberto é hoje uma impunidade por causa disso. Vai todo mundo pra casa.

ConJur — O que deve ser feito, então, com o condenado que progride, mas não acha vaga?
Guilherme Nucci — Tem que ir para o aberto direto. Está no fechado, ganha o direito, defiro. Não tem vaga, mas o que o preso tem com isso? O que é que o indivíduo tem com a inépcia estatal? “Ah, ele que apodreça no fechado porque a sociedade também não tem nada com isso.” Mas foi a sociedade que elegeu o governo. Então alguém tem que ser responsabilizado por esse indivíduo ter ido para a rua antes da hora. E se ele matar, estuprar, fizer acontecer, a culpa é do governante. A culpa não é do desembargador que deferiu o Habeas Corpus para ele ir para o regime aberto. É preciso que amanhã, quando esse indivíduo delinquir de novo porque ele não estava preparado para ir para o aberto, que todo mundo se reúna e fale: “Culpa de quem? Do Executivo”.

ConJur — Mas tem o juiz que manda ele continuar preso.
Guilherme Nucci — Tem que parar com essa história de “eu sou desembargador justiceiro, eu tenho que fazer justiça de qualquer jeito e mandar esse cara continuar no regime fechado. A sociedade não pode pagar essa conta, e se não tem vaga no semiaberto, fica no fechado”. Fazendo isso, estou resolvendo um problema do Executivo. Eu sou juiz, não tenho que resolver isso, tenho é que aplicar a lei. E a lei fala que ele tem de ir para o semiaberto, então ele tem de ir para fora da cadeia. Ele tem direito de estar numa colônia penal. Se não tem vaga, vai para um regime melhor, não pior. É meio que óbvio. Uma argumentação: se eu vou para um hotel e pago o quarto de luxo, mas não tem vaga, o hotel vai me mandar para a suíte presidencial, o regime aberto, ou para o standard, o regime fechado?

ConJur — No caso da saúde pública, também se discute se cabe ao Judiciário decidir pelo Executivo.
Guilherme Nucci — Até hoje. “Eu preciso trabalhar, preciso botar meu filho na creche. O Estado prometeu. Tá aqui do lado a creche, do meu lado. Não tem vaga”. Entra na fila. Fila de creche, fila de hospital. Aí o que acontece? Eu me lembro que era juiz da Fazenda Pública na época do problema das creches. Era liminar em cima de liminar para botar criança na creche. O que é que o Executivo reclamou? Que o Judiciário está se metendo nos negócios do governo. Com a saúde foi a mesma coisa. O sujeito chegava lá dizendo: “Estou morrendo, preciso de tratamento”. Eu dava a liminar: “Estado, paga o remédio para esse sujeito”. Aí vinha mais uma discussão: “A jurisdicionalização da saúde pública. Os juízes querem comandar a saúde pública do estado”. Onde o juiz bota a mão firme para o Executivo trabalhar, irrita.

ConJur — É o mesmo problema com saúde, creche e presos...
Guilherme Nucci — O mesmo problema. Agora, se vamos chegar naquele ponto “mas o Estado não pode fazer tudo”, então vamos parar e discutir tudo de novo, porque alguma coisa está errada. Eu prometo tudo e não entrego nada, e ainda tem alguns que dizem que está certo em não dar. Mas é simples: vamos mudar as regras, as leis, a Constituição e dizer que não temos mais direitos. O que eu não me conformo é botar o filho de um na creche e o do outro, não. Isso é horroroso. Na minha área, o que eu posso fazer para as pessoas terem direitos iguais, eu faço.

ConJur — O ministro Joaquim Barbosa recentemente falou na ideia de que o prazo prescricional só deveria contar para a investigação. Segundo ele, depois que o inquérito chega ao Judiciário e vira ação penal, acabaria o prazo e nunca prescreveria. É viável?
Guilherme Nucci — Não. O réu não tem que arcar com o peso da máquina do Judiciário. A prescrição existe porque o Estado é ineficiente. Se o Judiciário leva 20 anos para julgar, o que o réu tem com isso? O problema da máquina é a efetividade, um processo não pode se arrastar por milênios. A prescrição atrapalha? Vamos reformar o Regimento Interno do STF, que está muito desatualizado, vamos reformar algumas leis penais e processuais, para readaptar, porque o Código Penal é de 1941. Mas tenha certeza: mudar lei não muda mentalidade.

ConJur — Tem de ver os efeitos da lei na prática, não é?
Guilherme Nucci — A lei não muda a prática. Não é “muda a lei, muda o mundo”. A lei ajuda, mas especialmente quando ela muda em face da realidade, não quando ela muda em um mundo fictício. Se eu implantar um código suíço no Brasil, o Brasil não vai virar a Suíça. Mas é evidente que se você pega um caso de quase 40 réus e joga para o Supremo julgar, nem um juiz de primeiro grau daria conta de julgar isso rápido, quem dirá um colegiado.

ConJur — No caso do mensalão foram meses de debates, fora os anos de instrução.
Guilherme Nucci — Isso não é por acaso. Todo mundo sabe que demora e todo mundo quer o foro privilegiado. As coisas não vão se resolver tão cedo enquanto o Brasil não “elasticizar” um pouco mais essas prerrogativas. A gente precisa ser mais americanizado nesse ponto. Lá, sim, há democracia plena nesse aspecto. Lá o presidente da República sentou no banco dos réus. O Bill Clinton teve de se sujeitar a uma pronúncia, naquele caso da Monica Lewinski. Teve de se justificar perante o júri sob o risco de ser condenado por perjúrio. Quando isso vai acontecer no Brasil? Isso é democracia, o resto é conversa.

ConJur — Mas há abuso com o uso de recursos deliberadamente protelatórios?
Guilherme Nucci — Vamos diferenciar. Recurso protelatório é uma coisa, ação protelatória é outra. É natural que os advogados, em geral, quando percebam algum flanco de petição, vão por esse caminho. Se eu fosse advogado, faria a mesma coisa. Estou trabalhando pelo meu cliente. O advogado que não faz isso é cobrado depois. Nem gosto de falar que o recurso é protelatório, porque ele está previsto em lei. E se está em lei, não pode ser chamado de protelatório. É direito. Ou reforma a lei e tira o recurso. Mas se eu, de fora, como juiz, enxergo o recurso como uma coisa sem efeito, apenas com a intenção de atrasar a conclusão do caso, eu tiro o recurso, não conheço dele. Simples. Não preciso fazer alarde, dar bronca no advogado. Enquanto existe o recurso previsto em lei, não posso acusar o advogado e falar “olha, está protelando!” 

ConJur — A ministra Eliana Calmon, quando ocupou a Corregedoria do CNJ, costumava falar nos bandidos de toga, que a corrupção tomou conta do Judiciário. São estes os problemas do judiciário?
Guilherme Nucci — Criou-se uma frase que a imprensa gostou e captou. Mas eu não tenho muito receio de frases de efeito, não. Elas têm o seu valor. Quando você faz uma afirmação muito dura e ela repercute dá uma balançada no jogo, dá uma mexida na areia do fundo do lago. Não é ruim, de todo. Se você fala, por exemplo, que “juízes sentenciam mal”, todos vão falar: “Mas que absurdo!” Mas vai acordar muita gente. “Por que foi falado isso? Será que existe esse problema? Será que sentencio mal? Será que sou venal?”. Do nada, essas frases não vêm. Mas é mais uma questão de autocrítica, porque elas não têm nenhum efeito prático.

ConJur — O mensalão também trouxe à tona o tema da prescrição da pretensão punitiva. Qual o problema? É a lei processual penal que permite o alongamento indefinido do processo?
Guilherme Nucci — Não creio que a culpa seja da lei. O ponto fundamental aí é máquina emperrada. A gente tinha que ter mais juízes, mais funcionários, não tem outra alternativa.

ConJur — Isso não pulverizaria a jurisprudência?
Guilherme Nucci — Mas aí é o de menos. O importante é andar. E aqui em São Paulo também tem a questão correcional: a máquina está emperrada e o juiz é obrigado a trabalhar contra a máquina, mas também tem o juiz que não trabalha. Então a atividade do CNJ, da Corregedoria-Geral é importante. 

ConJur — O que acha da atuação do CNJ?
Guilherme Nucci — Não acompanho diretamente, não sei internamente como as coisas funcionam, mas pelo que leio, o impacto tem sido positivo. Juiz que trabalha não é perturbado pelo CNJ. O mau juiz, de fato, deve responder, deve ser perturbado. Mas é claro que a gente tem de ponderar. Fui assessor da Corregedoria aqui em São Paulo em 2000 e 2001. A gente fiscalizava bem, perguntava por que não estava trabalhando. E o juiz respondia: “Porque estou sem funcionário”. E aí o que se pode fazer? Nada. Precisamos ponderar para que não haja injustiça.

ConJur — A questão é estrutural.
Guilherme Nucci — Temos que aparelhar melhor o judiciário, e aí cobrar o juiz. Dou os funcionários, melhoro a estrutura da vara, mas agora quero as coisas funcionando. Se você não pode dar a estrutura, não pode cobrar. E aí a máquina emperra.

Entrevista no CONJUR de 15/04/2013, Por PEDRO CANÁRIO


Fonte: Consultor Jurídico - Entrevistas

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Havia alternativa? Chomsky revisita o 11 de Setembro

Vale sempre à pena ler de novo Noam Chomsky, que pra mim é um dos principais críticos Norte Americanos, e mesmo estando às vésperas de um novo conflito armado, agora no Leste Asiático em face à política do Governo da Coréia do Norte, com outras características, mas com o mesmo pano (velho e roto) de fundo.
Abraços,
Dani Felix

(Ps. A quem interessar possa, tenho estado extremamente ocupada, face as lutas dos Movimentos Sociais em Floripa e Região e período de provas na Universidade (elaborações, correções e etc.), motivo das poucas publicações nas últimas semanas) 

A resposta ao 11 de Setembro, um ataque maciço a uma população muçulmana, conduziu os Estados Unidos à 'armadilha diabólica' estendida por Bin Laden. O resultado foi que Washington continuou a ser o único aliado indispensável de Bin Laden, mesmo após a sua morte. Gastos militares grotescamente aumentados e dependência da dívida... pode ser o mais pernicioso legado do homem que pensou que poderia derrotar os Estados Unidos. O artigo é de Noam ChomskyData: 12/09/2011
Estamos a aproximar-nos do 10º aniversário das horrendas atrocidades do 11 de setembro de 2001, que, como se diz habitualmente, mudaram o mundo. No dia 1° de Maio deste ano, o presumível mentor do crime, Osama Bin Laden, foi assassinado no Paquistão por um comando militar de elite dos EUA, os SEALs da Marinha, depois de ter sido capturado, desarmado e indefeso, na Operação Geronimo.
Uma série de analistas observaram que Bin Laden, apesar de ter sido finalmente morto, obteve importantes sucessos na sua guerra contra os EUA. “Ele afirmou muitas vezes que a única maneira de expulsar os EUA do mundo muçulmano e derrotar os seus sátrapas era atrair os americanos para uma série de pequenas mas caras guerras, que acabariam por arruiná-los”, escreve Eric Margolis. “'Sangrar os EUA', nas suas próprias palavras. 

Os Estados Unidos, primeiro sob George W. Bush e depois sob Barack Obama, correram diretamente para a armadilha de Bin Laden... Gastos militares grotescamente aumentados e dependência da dívida... pode ser o mais pernicioso legado do homem que pensou que poderia derrotar os Estados Unidos” – particularmente quando a dívida está a ser cinicamente explorada pela extrema-direita, com a conivência do establishment democrata, para minar o que resta de programas sociais, de educação pública, de sindicatos, e, em geral, das restantes barreiras à tirania empresarial.

Logo se tornou evidente que Washington estava inclinado a realizar os mais fervorosos desejos de Bin Laden. Como discuti no meu livro “9-11”, escrito pouco depois da ocorrência dos ataques, qualquer um que conhecesse a região poderia reconhecer “que um ataque maciço a uma população muçulmana era a resposta às orações de Bin Laden e dos seus seguidores, e conduziria os Estados Unidos e os seus aliados a uma 'armadilha diabólica', nas palavras do ministro dos Negócios Estrangeiros francês”.

O analista sênior da CIA responsável por perseguir Osama Bin Laden desde 1996, Michael Scheuer, escreveu pouco depois que “Bin Laden tem dito com precisão as razões que o levaram a desencadear a guerra contra nós. [Ele] pretende mudar de forma drástica as políticas dos EUA e do Ocidente em relação ao mundo islâmico”, e com um amplo sucesso: “As forças e as políticas dos EUA estão a provocar a radicalização do mundo islâmico, algo que Osama Bin Laden vem tentando fazer com sucesso substancial, mas incompleto, desde o início dos anos 90. O resultado, parece-me justo concluir, é que os Estados Unidos da América continuam a ser o único aliado indispensável de Bin Laden.” E possivelmente continuam a sê-lo, mesmo após a sua morte.


O primeiro 11/9

Havia uma alternativa? Há todas as probabilidades de que o movimento jihadista, muito do qual altamente crítico a Bin Laden, pudesse ter sido dividido e minado após o 11/9. O “crime contra a humanidade”, como era corretamente chamado, poderia ter sido abordado como um crime, com uma operação internacional para deter os presumíveis suspeitos. Na época esta ideia foi reconhecida, mas a sua execução sequer foi considerada.

Em “9-11”, citei a conclusão de Robert Fisk de que “o crime horrendo” de 11/9 foi cometido “com maldade e crueldade impressionante,” um juízo exato. É útil ter em mente que os crimes poderiam ter sido ainda piores. Suponham, por exemplo, que o ataque tivesse ido tão longe ao ponto de bombardear a Casa Branca, matando o presidente, de impor uma ditadura militar brutal que matasse milhares e torturasse dezenas de milhares, instalando ao mesmo tempo um centro de terror internacional que ajudasse a impor estados similares de tortura-e-terror noutros países, e executando uma campanha internacional de assassinato; e como um incentivo suplementar, tivesse trazido uma equipa de economistas – chamemos-lhes de “os Kandahar boys” – que rapidamente conduzissem a economia a uma das piores depressões da sua história. Claramente, teria sido muito pior do que o 11/9.

Infelizmente, nada disto é especulação. Aconteceu. A única inexatidão neste breve relato é que os números devem ser multiplicados por 25 para produzir equivalentes per capita, a medida apropriada. Refiro-me, naturalmente, àquilo que na América Latina é frequentemente chamado de “o primeiro 11/9”: o 11 de Setembro de 1973, quando os Estados Unidos culminaram com sucesso os seus esforços para derrubar o governo democrático de Salvador Allende, no Chile, com um golpe militar que levou ao poder o regime brutal do general Pinochet. O objetivo, nas palavras da administração Nixon, era matar o “vírus” que poderia estimular todos esses “estrangeiros [que] andam a querer tramar-nos” e que queriam assumir o controle dos seus próprios recursos e aplicar uma política intolerável de desenvolvimento independente. A apoiar esta política estava a conclusão do Conselho de Segurança Nacional que, se os EUA não conseguiam controlar a América Latina, não se podia esperar que conseguissem realizar a sua Ordem “em qualquer outro lugar no mundo.”

O primeiro 11/9, ao contrário do segundo, não mudou o mundo. Não era “nada de grandes consequências”, como garantiu Henry Kissinger ao seu chefe poucos dias depois.

Estes eventos de poucas consequências não se limitaram ao golpe militar que destruiu a democracia chilena e pôs em movimento a história de horror que se seguiu. O primeiro 11/9 foi apenas um ato de um drama que começou em 1962, quando John F. Kennedy alterou a missão dos militares latino-americanos de “defesa hemisférica” – um resquício anacrônico da Segunda Guerra Mundial – para a “segurança interna”, um conceito com uma interpretação arrepiante nos círculos latino-americanos dominados pelos EUA.

Na “História da Guerra Fria”, recentemente publicada pela Universidade de Cambridge, o acadêmico latino-americano John Coatsworth escreve que daquele tempo até “ao colapso soviético em 1990, o número de presos políticos, de vítimas de tortura, e de execuções de dissidentes políticos não violentos na América Latina excedeu amplamente os da União Soviética e seus satélites europeus do Leste,” incluindo também muitos mártires religiosos e massacres em massa, sempre apoiados ou iniciado em Washington. O último grande ato violento foi o assassinato brutal de seis importantes intelectuais latino-americanos, sacerdotes jesuítas, poucos dias depois da queda do Muro de Berlim. Os criminosos foram um batalhão de elite salvadorenho, que já tinha deixado um chocante rasto de sangue, recém saído de um treinamento na Escola de Guerra Especial JFK, que atua sob as ordens diretas do Alto Comando do estado cliente dos Estados Unidos.

Evidentemente, as consequências desta praga hemisférica ainda ecoam.


Dos raptos à tortura e ao assassinato

Tudo isto, e muitas coisas semelhantes, são desvalorizadas como sendo de pouca importância, e esquecidas. Aqueles cuja missão é governar o mundo desfrutam de uma imagem mais reconfortante, muito bem articulada na atual edição do prestigiado (e valioso) jornal do Royal Institute of International Affairs, em Londres. O artigo principal discute “a ordem internacional visionária” da “segunda metade do século XX” marcada pela “universalização de uma visão americana da prosperidade comercial”. Eis uma visão que não chega a exprimir a percepção daqueles que estão do lado errado das armas.

O mesmo vale para o assassinato de Osama Bin Laden, que põe fim, pelo menos, a uma fase da “guerra contra o terror” re-declarada pelo presidente George W. Bush no segundo 11/9. Façamos algumas reflexões sobre esse evento e o seu significado.

Em 1° maio de 2011, Osama Bin Laden foi morto na sua praticamente desprotegida residência por uma incursão de 79 SEALs da Marinha, que entraram no Paquistão de helicóptero. Depois de muitas histórias sensacionalistas fornecidas pelo governo e retiradas, os relatórios oficiais tornaram cada vez mais claro que a operação foi um assassinato planejado, violando multiplamente as normas elementares do direito internacional, começando com a invasão em si. (sem grifo no original)

Não parece ter havido qualquer tentativa de deter a vítima desarmada, como presumivelmente poderia ter sido feito por 79 comandos que não enfrentaram oposição – excepto, relatam, da sua esposa, também desarmada, contra a qual dispararam em legítima defesa, quando ela “arremeteu” sobre eles, de acordo com a Casa Branca.

A reconstrução plausível dos acontecimentos foi feita pelo veterano correspondente no Oriente Médio, Yochi Dreazen, e colegas na revista Atlantic. Dreazen, ex-correspondente militar do Wall Street Journal, é correspondente sênior do Grupo National Journal, cobrindo assuntos militares e de segurança nacional. De acordo com a sua investigação, o planejamento da Casa Branca não parece ter considerado a opção de capturar Bin Laden vivo: “O governo deixou claro ao clandestino Comando Conjunto de Operações Especiais que queria Bin Laden morto, de acordo com uma autoridade sênior dos EUA que teve conhecimento das discussões. Um oficial de alta patente militar que foi informado do assalto disse que os SEALs sabiam que a sua missão não era levá-lo vivo.”

Os autores acrescentam: “Para muitos, no Pentágono e na CIA, que tinham passado quase uma década a caçar Bin Laden, matar o militante foi um ato necessário e justificado de vingança”. Além disso, “a captura de Bin Laden vivo teria também posto a administração diante de uma série de incômodos desafios jurídicos e políticos”. Melhor, então, assassiná-lo, deitar o corpo ao mar sem a autópsia considerada essencial depois de uma morte – um ato que previsivelmente provocou raiva e ceticismo em grande parte do mundo muçulmano. (sem grifo no original)

Como observa a investigação da Atlantic: “A decisão de matar Bin Laden sem rodeios foi a ilustração mais clara até agora de um aspecto pouco notado da política de contra-terrorismo da administração Obama. O governo Bush capturou milhares de militantes suspeitos e enviou-os para campos de detenção no Afeganistão, no Iraque e na Baía de Guantánamo. A administração Obama, em contraste, tem-se concentrado em eliminar terroristas individuais em vez de tentar capurá-los vivos.” Trata-se de uma diferença significativa entre Bush e Obama. Os autores citam o ex-chanceler da Alemanha Ocidental Helmut Schmidt, que “disse à TV alemã que a invasão dos EUA foi 'muito claramente uma violação do direito internacional' e que Bin Laden deveria ter sido detido e levado a julgamento”, contrapondo Schmidt ao Procurador Geral dos EUA, Eric Holder, que “defendeu a decisão de matar Bin Laden, embora este não representasse uma ameaça imediata para os SEALs, dizendo a um painel da Câmara ... que o assalto tinha sido 'legal, legítimo e adequado em todos os sentidos'”. (sem grifo no original)

A eliminação do corpo sem autópsia também foi criticada por aliados. O eminente advogado britânico Geoffrey Robertson, que apoiou a intervenção e se opôs à execução em grande parte por razões pragmáticas, considerou no entanto a afirmação de Obama de que “fora feita justiça” como um “absurdo”, o que deveria ser óbvio para um ex-professor de direito constitucional. A lei do Paquistão “exige um inquérito sobre a morte violenta e a legislação internacional de direitos humanos insiste que o 'direito à vida' obriga a um inquérito sempre que ocorre uma morte violenta por ação de um governo ou da polícia. Os EUA têm, portanto, o dever de realizar um inquérito que satisfaça o mundo quanto às verdadeiras circunstâncias desta morte.”

Robertson, a propósito, recorda-nos que “nem sempre foi assim. Quando chegou a hora de decidir o destino de homens muito mais mergulhados na maldade que Osama Bin Laden – a liderança nazi – o governo britânico queria que eles fossem enforcados seis horas após a captura. O presidente Truman hesitou, citando a conclusão de Robert Jackson, do Supremo Tribunal, que a execução sumária “não se sentaria facilmente na consciência americana nem seria lembrada pelos nossos filhos com orgulho... o único caminho é determinar a inocência ou culpa do acusado depois de uma audiência tão desapaixonada quanto os tempos permitam e após um registo que vai deixar claros as nossas razões e motivos”.

Eric Margolis comenta que “Washington nunca publicou provas da sua afirmação de que Osama bin Laden esteve por trás dos ataques do 11 de Setembro”, presumivelmente uma razão pela qual “as sondagens mostram que pelo menos um terço dos americanos que responderam acredita que o governo de Estados Unidos e/ou Israel estiveram por trás do 11 de Setembro”, enquanto no mundo muçulmano o ceticismo é muito mais alto. “Um julgamento aberto nos Estados Unidos ou em Haia teria exposto essas afirmações à luz do dia”, continua, razão prática pela qual Washington deveria ter seguido a lei.

Em sociedades que professam algum respeito pela lei, os suspeitos são detidos e levados a um julgamento justo. Sublinho "suspeitos". Em junho de 2002, o chefe do FBI Robert Mueller, no que o Washington Post descreveu como “entre os seus comentários públicos mais detalhados sobre a origem dos ataques”, pôde dizer apenas que “os investigadores crêem na ideia de que os ataques do 11 de Setembro ao World Trade Center e ao Pentágono vieram de líderes da Al Qaeda no Afeganistão, a maquinação efetiva foi feita na Alemanha, e o financiamento veio através dos Emirados Árabes Unidos a partir de fontes no Afeganistão.”

O que o FBI acreditou e pensou em junho de 2002 não o sabia oito meses antes, quando Washington repeliu ofertas provisórias dos Taliban (quão sérias, não sabemos) para permitir um novo julgamento de Bin Laden se lhes fossem apresentadas provas. Assim, não é verdade, como o presidente Obama afirmou nas suas declarações da Casa Branca depois da morte de Bin Laden, que “rapidamente soubemos que os ataques do 11 de Setembro foram executados pela Al-Qaeda.”

Nunca houve alguma razão para duvidar do que o FBI acreditou em meados de 2002, mas isto deixa-nos longe da prova da culpa requerida em sociedades civilizadas – e quaisquer que as provas fossem, não justificam o assassinato de um suspeito que, parece, teria sido facilmente detido e levado a julgamento. O mesmo é mais ou menos verdade quanto às provas fornecidas desde então. Assim, a Comissão do 11 de Setembro forneceu provas circunstanciais extensas do papel de Bin Laden no 11 de Setembro, baseando-se principalmente no que lhe tinha sido dito sobre confissões de presos de Guantánamo. É duvidoso que muito disso se sustivesse num julgamento independente, tendo em conta as maneiras como as confissões foram extraídas. Mas, em qualquer caso, as conclusões de uma investigação autorizada pelo Congresso, por muito convincentes que se possam achar, claramente ficariam aquém de uma sentença por um tribunal credível, que é o que passa a categoria do acusado de suspeito para condenado.

Fala-se muito da "confissão" de Bin Laden, mas aquilo foi uma fanfarronice, não uma confissão, com tanta credibilidade quanto a minha "confissão" de que ganhei a maratona de Boston. A fanfarronice diz-nos muito do seu caráter, mas nada da sua responsabilidade pelo que ele considerou como um grande feito, do qual quis ficar com o crédito.

De novo, tudo isso é, de forma transparente, bastante independente do nosso juízo sobre a sua responsabilidade, que pareceu clara imediatamente, mesmo antes do inquérito do FBI, e que ainda parece.


Crimes de Agressão

Vale a pena acrescentar que a responsabilidade de Bin Laden foi reconhecida na maior parte do mundo muçulmano e condenada. Um exemplo significativo é o do eminente clérigo libanês, xeique Fadlallah, muito respeitado em geral pelo Hezbollah e por grupos xiitas, também fora do Líbano. Ele tinha alguma experiência com assassinatos. Tinha sido visado para assassínio: por um caminhão-bomba fora duma mesquita, numa operação organizada pela CIA em 1985. Escapou, mas 80 outros foram mortos, na maior parte mulheres e meninas ao saírem da mesquita – um daqueles crimes inumeráveis que não entram para os anais do terror por causa da falácia “da agência errada.” O xeique Fadlallah condenou marcadamente os ataques do 11 de Setembro.

Um dos especialistas principais do movimento jihadista, Fawaz Gerges, sugere que o movimento poderia ter-se dividido, tivessem os Estados Unidos explorado a oportunidade, em vez de mobilizar o movimento, em particular com o ataque ao Iraque, um grande benefício para Bin Laden, que levou a um aumento acentuado do terror, como as agências de espionagem tinham antecipado. Nas audições Chilcot, ao investigar o contexto da invasão do Iraque, por exemplo, o antigo chefe da agência de informações internas britânica MI5 declarou que tanto a agência britânica como a dos Estados Unidos estavam conscientes de que Saddam não representava qualquer ameaça séria, que a invasão provavelmente aumentaria o terror e que as invasões do Iraque e do Afeganistão tiveram partes de uma geração radicalizada de muçulmanos que viram as ações militares como “um ataque ao Islão”. Como acontece muitas vezes, a segurança não foi uma prioridade alta para a ação do estado. (sem grifo no original)

Poderia ser instrutivo perguntarmo-nos como estaríamos reagindo se comandos iraquianos tivessem aterrado no complexo militar de George W. Bush, o assassinassem e lançassem o corpo no Atlântico (depois dos rituais fúnebres devidos, naturalmente). Sem sombra de controvérsia, ele não era um "suspeito" mas sim o "decisor" que deu as ordens para invadir o Iraque – isto é, cometer “o crime internacional supremo que só se diferencia de outros crimes de guerra por conter dentro de si a maldade acumulada da totalidade” pelo qual os criminosos nazis foram enforcados: as centenas de milhares de mortes, os milhões de refugiados, a destruição da maior parte do país e do seu patrimônio nacional e o conflito sectário assassino que agora se estendeu ao resto da região. Igualmente de forma incontroversa, esses crimes excederam vastamente tudo o atribuído a Bin Laden(sem grifo no original)

Dizer que tudo isso é incontroverso, conforme é, não quer dizer que não seja negado. A existência de aplanadores da Terra não muda o fato de que, de forma incontroversa, a terra não é plana. De forma semelhante, é incontroverso que Stalin e Hitler foram responsáveis por crimes horrendos, embora os seus partidários o neguem. Tudo isto deveria, de novo, ser demasiado óbvio para ser comentado, e sê-lo-ia, exceto numa atmosfera de histeria tão extrema que bloqueasse o pensamento racional.

De forma semelhante, é incontroverso que Bush e seus parceiros cometeram mesmo o “crime internacional supremo” – o crime da agressão. Aquele crime foi definido de forma suficientemente clara pelo magistrado Robert Jackson, o Chefe do Conselho dos Estados Unidos em Nuremberg. "Um agressor", propôs Jackson ao Tribunal na sua declaração de abertura, é um estado que é o primeiro a cometer tais ações como a “invasão pelas suas forças armadas, com ou sem declaração da guerra, do território de outro estado”. Ninguém, nem mesmo o apoiante mais extremo da agressão, nega que Bush e parceiros fizeram precisamente isso. (sem grifo no original)

Também faríamos bem em lembrar as palavras eloquentes de Jackson em Nuremberg sobre o princípio da universalidade: “Se certos atos na violação de tratados são crimes, são crimes sejam os Estados Unidos ou seja a Alemanha fazê-los e não estamos preparados para estabelecer uma regra da conduta criminal contra outros que não estivéssemos dispostos a ter invocado contra nós”.

É também claro que intenções anunciadas são irrelevantes, mesmo se nelas se acreditar verdadeiramente. Registos internos revelam que os fascistas japoneses aparentemente acreditaram que, ao assolar a China, se esforçavam por a converter “num paraíso terrestre”. E embora possa ser difícil imaginar, é concebível que Bush e companhia acreditassem que protegiam o mundo da destruição pelas armas nucleares de Saddam. Tudo irrelevante, embora partidários ardentes em todos os lados possam tentar convencer-se de outra coisa.

Deixam-nos duas escolhas: ou Bush e seus parceiros são culpados do “crime internacional supremo” incluindo de todos os males que se seguem, ou então declaramos que os processos de Nuremberg foram uma farsa e que os aliados eram culpados de assassinato judicial(sem grifo no original)


A Mentalidade Imperial e o 11 de Setembro

Alguns dias antes do assassinato de Bin Laden, Orlando Bosch morreu pacificamente na Flórida, onde viveu juntamente com o seu cúmplice Luis Posada Carriles e muitos outros parceiros do terrorismo internacional. Depois de ter sido acusado de dúzias de crimes terroristas pelo FBI, Bosch recebeu um perdão presidencial de Bush I, passando por cima das objecções do Departamento de Justiça que considerou a conclusão “inevitável de que seria prejudicial para o interesse público dos Estados Unidos fornecer um porto seguro a Bosch”. A coincidência dessas mortes imediatamente traz a doutrina de Bush II à lembrança – “já … uma regra de fato das relações internacionais”, segundo o notável especialista de relações internacional de Harvard Graham Allison – que renega “a soberania de estados que fornecem santuário a terroristas”.

Allison refere-se à declaração oficial de Bush II, dirigida aos Taliban, de que “aqueles que abrigam terroristas são tão culpados como os próprios terroristas”. Tais estados, portanto, perderam a sua soberania e são objectivos prontos para bombardeamento e terror – por exemplo, o estado que abrigou Bosch e o seu parceiro. Quando Bush emitiu esta nova “regra de fato das relações internacionais”, ninguém pareceu notar que ele apelava à invasão e destruição dos Estados Unidos e ao assassínio dos seus presidentes criminosos.

Nada disto é problemático, claro, se rejeitarmos o princípio da universalidade do magistrado Jackson, e adotarmos antes o princípio de que os Estados Unidos são auto-imunes contra o direito internacional e as convenções – como, de fato, o governo tornou frequentemente muito claro.

Vale a pena também pensar no nome dado à operação de Bin Laden: Gerônimo. A mentalidade imperial é tão profunda que poucos parecem capazes de perceber que a Casa Branca está a glorificar Bin Laden chamando-lhe “Gerônimo” - o chefe índio apache que conduziu a resistência corajosa aos invasores das terras Apache.

A escolha descuidada do nome lembra a tranquilidade com que damos nomes às nossas armas de assassinato a partir das vítimas dos nossos crimes: Apache, Blackhawk[1]… Poderíamos reagir diferentemente se a Luftwaffe tivesse chamado aos seus aviões de combate "Judeu" e "Cigano".

Os exemplos mencionados caem dentro da categoria “excepcionalismo americano,” não fosse o fato de uma supressão fácil dos crimes próprios ser virtualmente ubíqua entre estados poderosos, pelo menos naqueles que não são derrotados e obrigados a reconhecer a realidade.

Talvez o assassinato tenha sido percebido pela administração como “um ato de vingança,” como Robertson conclui. E talvez a rejeição da opção legal de um julgamento reflita uma diferença entre a cultura moral de 1945 e a de hoje, como ele sugere. Qualquer que fosse o motivo, dificilmente podia ter sido apenas a segurança. Como no caso de “crime internacional supremo” no Iraque, o assassinato de Bin Laden é outra ilustração do fato importante de que a segurança é muitas vezes não uma alta prioridade da ação do estado, ao contrário da doutrina que recebemos.


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(*) Noam Chomsky é Professor emérito do Instituto no Departamento de Linguística e Filosofia do MIT. É autor de numerosas obras políticas de topo de vendas, incluindo “9-11: Was There an Alternative?” (Seven Stories Press), uma versão atualizada do seu relato clássico, que acaba de ser publicada esta semana juntamente com um novo ensaio destacado – a partir do qual este post foi adaptado – levando em conta os 10 anos desde os ataques do 11 de Setembro.

(**) Tradução de Luis Leiria e Paula Sequeiros para o Esquerda.net


[1] NT: Blackhawk, líder guerreiro dos nativos Norte-Americanos Sauk que demonstrou ser um poderoso opositor dos invasores colonizadores ingleses

domingo, 7 de abril de 2013

DRUMOND-SE...

Para começar a semana...


Acordar, viver

Carlos Drummond de Andrade

Como acordar sem sofrimento? 
Recomeçar sem horror? 
O sono transportou-me 
àquele reino onde não existe vida 
e eu quedo inerte sem paixão.


Como repetir, dia seguinte após dia seguinte, 
a fábula inconclusa, 
suportar a semelhança das coisas ásperas 
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?


Como proteger-me das feridas 
que rasga em mim o acontecimento, 
qualquer acontecimento 
que lembra a Terra e sua púrpura 
demente? 
E mais aquela ferida que me inflijo 
a cada hora, algoz 
do inocente que não sou?


Ninguém responde, a vida é pétrea.

***
Fonte: Inspire-se com 20 poemas de Carlos Drummond de Andrade - http://noticias.universia.com.br/destaque/especial/2011/10/31/883898/20-poemas-carlos-drummond-andrade.html