Muito boa entrevista e ótimo material disponibilizado pra pesquisa!
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O
componente corrupção, organização do crime por dentro do estado, tem que ser
mais seriamente investigada. No nosso entendimento tem um componente econômico
que é muito importante na deflagração dessa onda de violência"
Caros Amigos
Imobilismo do Estado, omissão em investigar e punir e corrupção dentro e
fora das estruturas do poder público são os ingredientes que mantêm São Paulo
refém de ataques do crime organizado, grupos de extermínio e revides
extra-judiciais. Com períodos mais intensos, como o vivido atualmente, desde
maio de 2006 o embate entre o Primeiro Comando da Capital (PCC), grupos de
extermínio e forças de segurança nunca parou de fato, diz a pesquisadora e
co-fundadora da organização não-governamental Justiça Global, Sandra Carvalho.
Junto com outros pesquisadores, Sandra é autora do mais completo estudo das
causas dos ataques de maio de 2006, intitulado "São Paulo sob
Achaque", baseado em pesquisa de 5 anos em documentos oficiais, inquéritos
e entrevistas com autoridades policiais - o 'achaque' no título, faz referência
direta à corrupção.
Previsível
Ao constatarem que as mesmas condições que detonaram os ataques de 2006
- corrupção, omissão, ausência de investigação e punição - continuavam
existindo em São Paulo, os pesquisadores não titubearam em vaticinar, ainda no
fim de 2010, que o Estado sofreria novos ataques. E acertaram - já são quase 100
policiais mortos e muitas chacinas nas periferias com mais de 200 assassinatos,
o que levou o governador Geraldo Alckmin a derrubar seu secretário de Segurança
Pública e substituí-lo e a aceitar ajuda do governo federal.
Em entrevista à Caros Amigos, Sandra aborda as constatações da pesquisa,
os ataques atuais e sua relação com a ineficiência e corrupção no Estado. Para
ler "São Paulo sob Achaque", clique aqui .
Caros Amigos - Há uma omissão do Estado em
tentar resolver esse problema?
Sandra Carvalho - O que a gente verificou na pesquisa é que as principais questões
que estavam envolvidas no que se costumou chamar de Crimes de Maio não foram
investigadas, não foram analisadas e não tiveram uma resposta adequada por
parte do Estado. O trabalho chama "São Paulo sobre Achaque", houve
até uma discussão do porque esse nome 'achaque', porque a palavra não é muito
utilizada, mas é usada na polícia e fazia todo sentido com base no que a gente
investigou, que é uma relação do crime organizado dentro e fora do Estado, de
setores que estão dentro (das estruturas) do estado, mas que estão realizando
atividades criminosas, com setores que são crime organizado por fora do estado.
Há uma relação econômica, digamos assim, mas nunca foi investigada
adequadamente.
Não houve essa resposta, não houve um enfrentamento de todo um setor que
estava envolvido com corrupção dentro e fora do estado e que motivou muito
dessas ações violentas, tanto por parte do crime, quanto por parte de setores
do estado.
CA - Vocês citam a corrupção de
policiais. O quanto da corrupção do poder público explica os ataques?
SC - Eu não sei quantificar, mas o que a gente pesquisou é que em maio
de 2006, situações muito emblemáticas, como foi o sequestro do enteado do
Marcola (líder do PCC na época), e depois a lista das transferências das
lideranças, foram fundamentais para deflagrar os ataques do PCC e depois o
revide da polícia.
Agora, algumas informações que venham por parte da polícia e que já
foram dadas visibilidade pelos meios de comunicação, apontam que talvez isso
também tenha acontecido. Eles falam da venda de uma lista ao PCC com nomes de
policiais, enfim.
A gente viu também que tinham muitos policiais, principalmente civis,
sendo investigados pela Corregedoria. E essas investigações nunca chegaram
a termo, não resultaram em investigação isenta, séria. O componente corrupção,
organização do crime por dentro do estado, tem que ser mais seriamente
investigada. No nosso entendimento tem um componente econômico que é muito
importante na deflagração dessa onda de violência, seja na ação das chacinas ou
de grupos de extermínio, em grande parte integrados por policiais. Me lembro
que na pesquisa, o então delegado geral, Desgualdo (Marco Antonio Desgualdo),
quando indagado pela gente sobre quem eram os encapuzados, ele na entrevista à nossa
equipe, falou "Eram PMs". Eram PMs, mas de lá para cá não teve uma
investigação, uma apuração, não foram desmanteladas essas organizações
criminosas, nem dentro do estado, nem de fora.
A gente falava que era importante uma investigação que envolvesse o
Ministério Público Federal, a Polícia Federal. A gente recomendou, na verdade,
a federalização dos crimes, para que não ficassem sendo investigado pela
própria polícia paulista. Nós, em parceria com a Defensoria Pública de São
Paulo e o movimento Mães de Maio, ingressamos com um pedido de deslocamento de
competência para que as investigações passassem para a esfera federal.
CA - Mas isso também nunca ocorreu.
SC - Nós nunca tivemos um retorno da Procuradoria Geral da República,
uma manifestação no sentido de que esse pedido avançasse e fosse encaminhado
para o STF. Também foi formada uma comissão especial na polícia para investigar
os crimes de maio, que infelizmente também não foi pra frente. O que a gente
pôde acompanhar - nós integramos essa comissão especial, e temos conversado,
dialogado sistematicamente com o grupo Mães de Maio -, é que também de maio de
2006 até agora, a gente teve momentos em que essa violência se intensifica. Mas
se a gente olha para a Baixada Santista, por exemplo, a gente vê uma
continuidade da ação de grupos de extermínio, das chacinas, com um perfil muito
parecido com o que a gente identificou em maio de 2006.
Agora, a imprensa reforça algumas notícias de que algumas das vítimas
tiveram a sua identidade, sua ficha criminal checada antes de serem
assassinadas. O nosso relatório também mostra que isso aconteceu nas mortes de
maio de 2006.
CA - Já era uma prática?
SC - Sim, já era uma prática. E há a proximidade entre a morte de um
agente do estado com uma chacina que acontece logo em seguida. Assim, o que a
gente vislumbra hoje é que realmente verifica-se algo muito parecido com maio e
2006.
CA - Quer dizer, o que está
ocorrendo hoje é só uma continuação?
SC - Claro, porque não houve um enfrentamento adequado e à altura do
que aconteceu naquele momento em 2006.
CA - Dá pra dizer que o Estado está
em um imobilismo em relação a esse assunto?
SC - Sim, está num imobilismo e omisso porque esse relatório, por
exemplo, foi entregue às autoridades públicas de São Paulo. Traz várias
questões que deveriam ter uma análise mais aprofundada. A gente fez, por
exemplo, um estudo de diversos casos registrados como "resistência",
de como na verdade foram execuções. E não houve nenhuma movimentação por parte
do poder público de São Paulo, do Ministério Público e mesmo do Judiciário de
reabertura de muitos desses casos, de uma investigação mais exaustiva.
CA - No estudo, vocês fazem várias
recomendações. Alguma delas foi realizada?
SC - Nos termos do que são as recomendações que a gente fez, muito
pouco delas foi realizado. Uma das questões eram os mutirões carcerários, mas o
CNJ (Conselho Nacional de Justiça) teve muita dificuldade de realizar os
mutirões, muita resistência do Estado, do próprio TJ de São Paulo (Tribunal de
Justiça de São Paulo). E não foi feita de forma satisfatória, foram verificados
vários problemas.
A gente falava também que seria super importante a instalação de uma
comissão parlamentar mista de inquérito para apurar exaustivamente essa
situação. Isso também não foi realizado, infelizmente. Também não foi feita uma
revisão integral do trabalho de investigação, tanto da polícia, quanto também do
próprio Ministério Público. Porque muitos inquéritos foram arquivados numa
brevidade muito grande, inquéritos extremamente frágeis. E o MP jamais poderia
ter concordado que investigações tão inócuas, tão incipientes fossem arquivados
com tanta brevidade. Então, a gente recomendava que o Conselho Nacional do
Ministério Público realizasse uma revisão integral da ação do próprio MP
paulista nesses casos. Essa ação também não foi feita e no nosso entendimento
também era importante de ser feito.
No estudo, a gente mostra como tudo foi conduzido para que não houvesse
uma investigação. A ocultação das provas, por exemplo, no caso dos encapuzados,
das chacinas. Os encapuzados chegavam, matavam e imediatamente na sequência
chegava uma viatura da polícia, que recolhia o corpo e muitas das vezes as
cápsulas, os projéteis que tinham sido disparados; nos inquéritos, só os
policiais eram ouvidos, as testemunhas não foram ouvidas. Então, tudo o que é
uma prática para a construção de um inquérito policial consistente, foi absolutamente
desprezado.
Pelo que a gente está vendo novamente, essa mesma prática tem
acontecido. Na investigação do que acontece hoje, em 2012, não houve uma
modificação na prática de como essas investigações são feitas e muito
provavelmente a gente vai ter resultado de não-investigação, de resultados
insatisfatórios como a gente viu em maio de 2006.
É necessário um enfrentamento muito mais contundente, uma investigação
mais rigorosa e externa, que se investigue a relação promíscua entre o crime
organizado dentro e fora (das estruturas) do estado para que a gente não veja a
repetição desses episódios.
CA - Vocês chegam a citar
envolvimento de políticos. Vocês aprofundaram essa investigação?
SC - A gente não aprofundou, a gente fala que chegou a indícios e por
isso a gente recomendava investigação. Nos chama atenção que várias crises
envolvendo o sistema prisional, a começar pelo próprio Massacre do Cararndiru
lá atrás, acontece em períodos eleitorais. A gente está saindo de um período
eleitoral agora; em maio de 2006 a gente também estava em um processo
eleitoral. As movimentações que acontecem dentro de um período eleitoral nos
mostraram que deveriam ser investigadas a fundo.
Muitas relações envolvendo parlamentares, políticos, algumas
movimentações nos trouxeram indícios, mas não houve tempo de fazer uma
investigação rigorosa nesse sentido.
CA - Mas é possível afirmar que o
PCC tem uma ideologia política e quer influir nos processos políticos?
SC - Eu não tenho elementos para dizer isso. Mas uma das suposições que
a gente tem, é que o PCC talvez tenha até abandonado essa vontade que ele tinha
- já tiveram denúncias na imprensa - de ter candidatos.
Mas mais do que isso, quero deixar bem claro, de forma muito incipiente,
nos parece que esses momentos eleitorais são muito propícios para negociações,
acordos, transações econômicas. Eu diria mais por aí. Por isso que a gente
recomendou investigações mais rigorosas.
CA - Forçar uma situação de acordo,
de conversa.
SC - Exatamente. Para com setores do crime organizado dentro do estado.
CA - Vocês chegaram a detectar
relações permanentes do PCC com outras facções fora do Estado de São Paulo?
SC - Não. As nossas investigações apontam através de entrevistas que
foram feitas, e mesmo pela documentação produzida pelos órgãos de imprensa, que
dentro do sistema prisional de alguns estados via-se movimentação de filiados do
PCC. Mas a gente não investigou a ação do PCC em outros estados. Isso ocorre,
inclusive, pelas próprias transferências após rebeliões, enfim. Então, a gente
identificou que tinham integrantes do PCC esparramados por presídios de outros
estados.
CA - Essas facções, como o PCC,
parecem um fenômeno de São Paulo e Rio de Janeiro...
SC - Mas é diferente. Sou de São Paulo, há 20 anos acompanho a situação prisional de São Paulo e há 7 anos no Rio de Janeiro. Vejo diferenças de como o crime se organiza dentro e fora do sistema prisional em São Paulo e Rio de Janeiro. Até porque, em São Paulo, a gente tem a predominância de uma facção e no Rio, tem mais facções coexistindo.
SC - Mas é diferente. Sou de São Paulo, há 20 anos acompanho a situação prisional de São Paulo e há 7 anos no Rio de Janeiro. Vejo diferenças de como o crime se organiza dentro e fora do sistema prisional em São Paulo e Rio de Janeiro. Até porque, em São Paulo, a gente tem a predominância de uma facção e no Rio, tem mais facções coexistindo.
CA - Mas é um fenômeno que ocorre em
outros estados?
SC - Vários estados têm facções. Vários têm o crime organizado dentro
das estruturas do estado. Se a gente olha no Espírito Santo, por exemplo, é um
estado que viveu situações do crime organizado, de ação de grupos de
extermínio, do crime envolvendo esferas do poder público no Legislativo, no
Judiciário, na polícia, dentro do sistema prisional. Então, assim, é um
fenômeno que acontece também em outros estados, mas guardando as diferenças e
características de como se organiza.
CA - Eu pergunto isso porque tem uma
sensação da população de que o crime organizado é generalizado, no Brasil todo.
É possível afirmar que o crime organizado se tornou um problema em todos os
estados?
SC - Tem várias caracterizações para crime organizado. A gente tem que
diferenciar o que é uma situação de violência do que é crime realmente
organizado. Na situação de São Paulo, como é também um pouco a situação do Rio
e é também do Espírito Santo, essa relação do crime que se organiza por dentro
do estado é muito forte.
Se a gente pensa o Rio de Janeiro, por exemplo, onde o chefe da Polícia
Civil foi preso, a cúpula foi desmontada por conta de seu envolvimento com o
crime organizado, você tem essa relação mais direta com agentes do estado - o
Álvaro Lins com a coisa dos jogos de azar, do jogo do bicho. No Espírito Santo
também.
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Fonte: Caros Amigos - http://www.carosamigos.com.br/index/index.php/cotidiano/2798-ataques-em-sp-imobilismo-corrupcao-e-omissao-do-estado?tmpl=component&print=1&layout=default&page=