Vale a Leitura!
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Dizia Maquiavel ao seu
soberano no célebre livro O Príncipe, ensinando como administrar um
estado. “Conhecendo-se de longe os males que virão (o que só é dado ao
homem prudente), pode-se curá-los facilmente. Mas, quando esses males se
avolumam de modo que todos já podem reconhecê-los, não há mais remédio
que possa estancá-los”. Pois é essa baratontice (de não saber entender a
realidade) que se pode observar nas declarações do governador Raimundo
Colombo, nos secretários municipais, no alto comando da polícia e tantas
outras autoridades, nesses dias em que, ao que parece, baixou um
zepelim dourado na cidade de Florianópolis. A tal da “segurança” do
estado de direito parece ter se esvaído e ninguém sabe onde encontrá-la,
com as autoridades preferindo atuar na aparência a mergulhar na
essência dos problemas, para definitivamente resolvê-los. Talvez, como
na música do Chico, estejam esperando uma Geni, que afaste o mal, por
hora, para que os turistas possam voltar e a cidade se sentir segura.
Na verdade, poucos
conseguem perceber que a raiz dessa violência desenfreada está na
própria existência de um sistema de organização da vida que divide as
pessoas em classes, sendo que uma é possuidora dos meios de produção e
das riquezas produzidas, e a outra, nada tem além do corpo, a força de
trabalho. Ao mesmo tempo, a classe que domina impõe uma pedagogia do
desejo que faz com que os que nada têm almejem possuir o que nunca
terão. Assim, quando essa expectativa se frustra, as respostas são as
mais diferentes: uns, se resignam, outros, lutam, outros tomam à força o
que o próprio sistema lhes ensina querer. Esses, os últimos, por
fazerem o que fazem, são perseguidos e punidos. E daí nasce o paradoxo
do sistema prisional. Grande parte dos que ali estão nada mais é do que
vítima de um sistema que lhes ensina a querer o que nunca terão, mas
que, por rebeldia ou necessidade, acabam por tomar na força. O estado,
criador do sistema punitivo, não tem qualquer compromisso com essas
gentes. Não quer cuidar delas, não quer recuperá-las, não se importa.
Trata como um tumor, uma doença que foi crescendo no corpo sarado que
tenta dar ao sistema social, e cujo destino final só pode ser o
extermínio.
Ao que se sabe as
prisões sempre existiram como espaço de confinamento daqueles que
burlassem a paz dos senhores. Os que não pagassem os tributos, os que se
rebelassem contra o poder, os chamados hereges. Nos tempos mais antigos
o confinamento não tinha o caráter de pena, o que se buscava era manter
a pessoa sob o domínio físico, visando garantir que os castigos fossem
impostos. Conforme conta Elizabeth Misciasci, no trabalho “Como nasceram
os cárceres”, até a chamada modernidade ninguém se importava muito com
os locais onde as pessoas eram aprisionadas exatamente por não estares
ligados a uma pena. Eram só os espaços nos quais a pessoa esperava pela
tortura ou pela execução. As penas, conta ela, eram imputadas conforme o
arbítrio dos governantes, que as definiam conforme o "status" social do
réu: “amputação dos braços, degolar, a forca, incendiar, a roda e a
guilhotina, proporcionando o espetáculo e a dor, como por exemplo, a que
o condenado era arrastado, seu ventre aberto, as entranhas arrancadas
às pressas para que tivesse tempo de vê-las sendo lançadas ao fogo. Eram
essas penas que constituíam o espetáculo favorito das multidões deste
período histórico”.
A ideia de prisão como
espaço de cumprimento de pena só vai começar com o advento do
capitalismo, pois como explica Misciaci, só num sistema em que o
trabalho humano é medido pelo tempo poderia vingar a proposta de se
fazer expiar o delito com um “quantum de liberdade”. Da mesma forma, na
Europa, durante o período da chamada revolução industrial, a pobreza das
gentes atingiu índices estratosféricos e desde aí, a criminalidade
também aumentou. Foi essa situação específica que gerou a construção de
lugares específico onde as pessoas pudessem ficar confinadas para
corrigir sua forma de agir no mundo. Naqueles dias era crime mendigar,
vagabundear, e não aceitar trabalho. As prostitutas eram consideradas
“criminosas natas”. O preso era um sujeito sem direitos, não importando
qual fosse seu delito. E foi apenas no século 18 que surgiu o Direito
Penitenciário como uma tentativa de garantir ao prisioneiro uma
proteção. A base era a exigência ética de que um ser humano deve ser
tratado com dignidade seja qual for o seu delito, e que a um ato
violento não se deveria pagar com outro.
Todo esse movimento da
sociedade em direção a garantia de direitos dos apenados nunca foi sem
razão. Ao observar a história das prisões fica bastante claro que boa
parte das pessoas que eram encarceradas estava mais para vítima do que
vilã. E isso quase sempre foi assim. É fato que existem criminosos
violentos e cruéis, mas no mais das vezes a maioria dos que estão nas
prisões cumprem pena por delitos leves.
No Brasil, o chamado
regime penitenciário, de caráter correcional, com fins de ressocializar e
reeducar o detento, só apareceu em 1890, depois reforçado e
resignificado com diversas outras leis. E, como é comum nos países que
ficam na periferia do capital, por aqui a pobreza sempre foi gigante,
criando as condições para que a criminalidade se fizesse em igual
dimensão. Num mundo onde a riqueza fica nas mãos de poucos, muitos são
os que se rebelam contra essa concentração, daí a necessidade que os
detentores da propriedade têm de contínua vigilância de seus bens. Para
isso criam forças de repressão e sistemas de reclusão para quem burla as
leis, as quais, majoritariamente, foram feitas pela classe dominante.
Logo, para servi-la.
O fato é que a tal da
ressocialização dos presos nunca foi real. As prisões serviram e
continuam servindo apenas como depósito de gente “malvada”, vista como
câncer da sociedade. Assim o que acontece com eles dentro dos portões
das penitenciárias não importa a ninguém. Para a maioria que vive
mansamente sob as regras ditadas pela minoria, existe até uma sensação
de segurança. Se os “malvados” estão presos, tudo correrá bem. É por
isso que as denúncias de superlotação, espancamentos, violências,
violação de direitos humanos, são vistas como coisas absurdas. Ou seja,
não é permitido à “escória” do “mundo livre” reclamar ou exigir qualquer
piedade. Se algum dia eles ousaram burlar as leis, que paguem por isso.
Não importa que esse pagamento seja o mais cruel, tanto quanto os da
idade média, aqueles que levam as boas pessoas às lágrimas quando vistos
em algum filme de “roliudi”.
O sistema, para se
proteger de quem o quer transformar, cria uma pedagogia do medo,
mostrando à exaustão o quanto de maldade e terror os “bandidos” espalham
pela terra. Não faz distinção entre os criminosos reais e os pobres
diabos que buscam sobreviver num mundo de exclusão. Isso tampouco
acontece dentro das prisões, nas quais um preso de primeira vez, por
roubar um pão, acaba na mesma cela que a de um assassino serial. As
prisões, então, em vez de promoverem a tal da reeducação, acabam se
transformando em escolas de crime. Muitas vezes, uma pessoa que cometeu
um delito simples, sai da penitenciária tão destruída psicologicamente
que tudo o que quer é vingança. Daí para outro crime é um passo só.
Hoje, em Florianópolis,
as pessoas mais pobres estão de novo pagando pela falta de visão do
Estado. Fazendo ouvidos moucos aos reclames dos presos no sistema
penitenciário, em vez de dar soluções simples como a garantia dos
direitos humanos, o estado faz o contrário. Assim, aviltados,
violentados e humilhados, os detentos com vinculação a grupos
organizados no mundo do crime, resolvem atuar da mesma forma, impondo ao
Estado a mesma violência e humilhação, ainda que a corda venha a
queimar na mão dos trabalhadores.
Com as autoridades
estatais em estado de baratatontice, não são poucas as vozes que se
levantam exigindo um banho de sangue para os criminosos. “Bandido bom é
bandido morto”, arengam, enquanto não tiveram um dos seus enredados na
teia da rebeldia ou da marginalidade. Acreditam-se completamente livres
de coisas assim, por isso babam por vingança. Muitas vezes são até
piedosos cristãos, frequentadores de missas e obras de caridade.
Criaturas para quem o “direito humano” só deve estar reservado aos
“bons”, seus iguais.
Mas, ocorre que “direito
humano” é coisa que vale para todos, sejam eles os privilegiados, os
ricos, os dominadores, ou os pobres, os excluídos, os marginais, os bons
ou os maus. Por isso se diz direito humano e não direito dos ricos, dos
bonitinhos ou dos branquinhos. O avanço da sociedade fez com que as
pessoas percebessem que punições como as que eram imputadas na idade
média, de castigos corporais, torturas e outras barbaridades não eram
condizentes com a natureza humana. Daí a necessidade de garantir os
direitos, mesmo daqueles que do ponto de vista da lei, cometeram
delitos. Para isso existe o direito, para superar a lei do talião, do
dente por dente. Só que em momentos de crise é fácil perceber o quanto a
humanidade ainda se mantém no passado brutal.
A segurança não é coisa
fácil de ser garantida num estado divido por classes com uma abissal
diferença econômica entre elas. Tampouco um banho de sangue nas prisões
da grande Florianópolis vai trazer a paz. Se a sociedade insistir no
dente por dente, olho por olho, isso não vai ter fim. Santa Catarina
vive sim uma queda de braço entre o estado e o crime organizado. Mas
essa é só a aparência imediata de um problema estrutural. Pode-se vencer
com o uso da força ou pode-se atuar no rumo de uma mudança radical no
sistema prisional do estado catarinense. E, mesmo isso ainda será um
pequeno passo diante da extrema violência que é o sistema capitalista em
si.
E aos que clamam por
sangue é bom que saibam que o “outro”, ainda que desigual, tem os mesmos
direitos de serem tratados com dignidade. Negar isso a eles é deixar-se
envolver pelo mesmo véu de alienação e desumanidade, com o qual estão
enredados os que cometem os crimes mais vis. É se equipar em vileza e
maldade. As pessoas que dioturnamente estão em luta pelos direitos
humanos não costumam escolher alvos específicos para o exercício de
direitos. Defendem a vida e a dignidade dos policiais, dos
trabalhadores, dos motoristas, das autoridades e dos que, premidos pela
brutalidade de um sistema que esmaga o humano, assumem o papel de
criminosos.
Florianópolis vive dias
de caos, com ônibus queimados e gentes assustadas, no mesmo momento em
que os trabalhadores da saúde estão parados por melhores salários e
condições de trabalho. Assim, da mesma forma como os empresários tem
seus bens depredados, os mais pobres, que dependem do serviço público,
amargam nos hospitais e nos postos de saúde, sem atendimento. O
tratamento dado pelo governador é desigual. Aos empresários, manda
escolta policial, aos trabalhadores, corta o ponto e ameaça, deixando os
espaços de saúde sem guarnição. Mas, isso, ao que parece, gera
indignação em muito poucos...
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