Muito bom o artigo. Vale a leitura!
Abraços,
Dani Felix
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Por David Harvey*
Tradução: João Alexandre Peschanski
Um dos textos do Livro Occupy, Editora Boitempo, lançado em 04/04/2012
O
Partido de Wall Street controlou os Estados Unidos sem dificuldades por
tempo demais. Controlou totalmente (em contraste com parcialmente) as
políticas dos presidentes por pelo menos quatro décadas (para não dizer
mais), independentemente de se algum presidente individual foi ou não
seu agente por vontade própria. Corrompeu legalmente o Congresso por
meio da dependência covarde de políticos dos dois partidos em relação ao
poder do dinheiro e ao acesso à mídia comercial que controla. Graças a
nomeações feitas e aprovadas pelos presidentes e Congresso, o Partido de
Wall Street domina muito do aparato estatal e do Judiciário, em
especial a Suprema Corte, cujas decisões estão crescentemente a favor
dos interesses venais do dinheiro, em esferas tão diversas quanto
eleitoral, trabalhista, ambiental e comercial.
O
Partido de Wall Street tem um princípio universal de dominação: não
pode haver qualquer adversário sério ao poder absoluto do dinheiro de
dominar absolutamente. E esse poder é para ser exercido com um único
objetivo. Os detentores do poder do dinheiro não devem apenas ter o
privilégio de acumular riqueza sem fim a seu gosto, mas também de herdar
o planeta, tomando direta ou indiretamente o domínio da Terra, todos os
seus recursos e as potencialidades produtivas que nela residem. O resto
da humanidade se torna nessa visão supérfluo.
Esses
princípios e práticas não surgem da ganância individual, falta de
horizonte ou abusos (por mais que todos esses ocorram aos montes). Esses
princípios se formaram no corpo político de nosso mundo por meio da
vontade coletiva de uma classe capitalista instigada pelas leis
coercivas da competição. Se meu grupo de pressão gasta menos do que o
seu, então receberei menos favores. Se esse departamento gasta para
atender às necessidades das pessoas, então se torna menos competitivo.
Muitas
pessoas decentes estão presas a um sistema que está completamente
podre. Se querem ter um salário razoável, não têm outra opção além de se
render à tentação do diabo: só estão “seguindo ordens”, como Eichmann
disse, “fazendo o que o sistema pede”, como se diz hoje em dia,
aceitando os princípios e práticas bárbaras e imorais do Partido de Wall
Street. As leis coercivas da competição nos forçam todos, em diferentes
níveis, a obedecer às regras desse sistema cruel e insensível. O
problema é sistêmico, não individual.
Os
ideais de liberdade e autonomia do partido, a serem garantidos pelos
direitos à propriedade privada, livre-mercado e livre-comércio, se
traduzem na realidade pelo direito de explorar o trabalho alheio, de
despossuir as pessoas de seus bens a seu bel prazer e a liberdade de
saquear o meio ambiente para seus benefícios individuais ou de classe.
No
controle do aparato estatal, o Partido de Wall Street geralmente
privatiza todos os ramos de atividade interessantes, abaixo do valor de
mercado, para abrir novas frentes para a acumulação do capital. Arranja
esquemas de subcontratação (do qual o complexo militar industrial é um
exemplo claro) e de tributação (subsídios ao agronegócio e baixos
impostos sobre os ganhos do capital) que lhe permitem limpar livremente
os cofres públicos. Estimula deliberadamente sistemas regulatórios
complicados e níveis surpreendentes de incompetência administrativa no
resto do aparato estatal (vide a Agência de Proteção Ambiental sob
Reagan e a Agência Federal de Gestão de Emergências sob Bush), de modo a
convencer um público inerentemente cético de que o Estado não consegue
ter um papel construtivo ou de apoio para melhorar a vida ou as
perspectivas futuras das pessoas. Por fim, usa o monopólio da violência,
que todo Estado soberano reivindica, para excluir o público do espaço
público e para por pressão, vigiar e, se necessário, criminalizar e
prender quem não aceitar de modo amplo suas ordens. É exímio nas
práticas de tolerância repressiva que perpetuam a ilusão de liberdade de
expressão enquanto essa expressão não expuser claramente a natureza
verdadeira de seu projeto e o aparato repressivo sobre o qual repousa.
O
Partido de Wall Street articula incessantemente a guerra de classes:
“Claro que há uma guerra de classes”, disse Warren Buffett, “e é minha
classe, os ricos, que a está fazendo e vencendo”. Em grande parte, essa
guerra é articulada em segredo, atrás de uma série de máscaras e ilusões
pelas quais os planos e objetivos do Partido de Wall Street se
escondem.
O
Partido de Wall Street sabe muito bem que quando perguntas políticas e
econômicas se transformam em questões culturais, não há como
respondê-las. Geralmente aciona uma enorme variedade de opiniões de
especialistas cativos, na sua maior parte empregados em institutos de
pesquisa e universidades que financia e espalhados na mídia que
controla, para criar controvérsias sobre assuntos que de fato não
importam e sugerir soluções a perguntas que de fato não existem. Num
instante, só fala da austeridade necessária a todas as outras pessoas
para tratar do déficit e, num outro, propõe a redução de sua própria
tributação sem se importar sobre o impacto no déficit. A única coisa que
nunca pode ser debatida ou discutida é a verdadeira natureza da guerra
de classes que tem mantido de modo incessante e tão cruel. Descrever
algo como “guerra de classes” é, no clima político atual e no julgamento
dos especialistas, colocar-se fora do espectro de considerações sérias,
sendo chamado de imbecil, senão de sedicioso.
Mas
agora pela primeira vez há um movimento explícito que enfrenta o
Partido de Wall Street e seu mais puro poder do dinheiro. Wall Street
está sendo ocupada — ô, horror dos horrores — por outros! Espalhando-se
de cidade em cidade, as táticas do Ocupem Wall Street são tomar
um espaço público central, um parque ou uma praça, próximo a onde
muitos dos bastiões do poder estão localizados, e fazer com que corpos
humanos convertam esse lugar de espaço público em uma comunidade de
iguais, um lugar de discussão aberta e debate sobre o que esse poder
está fazendo e as melhores formas de combater seu alcance. Essa tática,
mais conspicuamente presente nas lutas nobres e atuais da praça Tahrir,
no Cairo, se alastrou por todo o mundo (praça do Sol, em Madri, praça
Syntagma, em Atenas, agora as escadarias de Saint Paul, em Londres, além
da própria Wall Street). Mostra como o poder coletivo de corpos no
espaço público continua sendo o instrumento mais efetivo de oposição,
quando o acesso a todos os outros meios está bloqueado. A praça Tahrir
mostrou ao mundo uma verdade óbvia: são os corpos na rua e praças, não o
fluxo de sentimentos no twitter ou facebook, que realmente importam.
O
objetivo desse movimento nos Estados Unidos é simples. Diz: “Nós, as
pessoas, estamos determinadas a retomar nosso país dos poderes do
dinheiro, que atualmente o controlam. Nosso objetivo é mostrar que
Warren Buffett está enganado. Sua classe, os ricos, não vai mais
governar sem oposição e não vai mais herdar automaticamente a Terra. Sua
classe, os ricos, não está destinada a sempre vencer”.
Diz
“Somos os 99%”. Somos a maioria e essa maioria pode, deve e vai
prevalecer. Na medida em que todos os outros canais de expressão estão
fechados por causa do poder do dinheiro, não temos outra opção a não ser
ocupar os parques, praças e ruas de nossas cidades até que nossas
opiniões sejam ouvidas e nossas necessidades atendidas.
Para
ter êxito, o movimento precisa alcançar os 99%. Conseguirá e o está
fazendo um passo por vez. Primeiro, há todas as pessoas jogadas na
miséria pelo desemprego e aquelas que foram ou estão sendo despossuídas
de suas casas e bens pela falange de Wall Street. Deve formar grandes
coalizões entre estudantes, imigrantes, sub-empregados e todos os que
estão ameaçados pelas políticas de austeridade, totalmente
desnecessárias e draconianas, impostas sobre a nação e o mundo para
atender ao Partido de Wall Street. Deve por o foco nos níveis
estarrecedores de exploração nos locais de trabalho — dos empregados
domésticos imigrantes que os ricos exploram tão cruelmente em suas casas
aos funcionários de restaurantes que são escravizados por quase nada
nas cozinhas dos estabelecimentos onde os ricos comem tão copiosamente.
Deve unir os trabalhadores criativos e artistas cujos talentos são
transformados tantas vezes em produtos comerciais pelo grande poder do
dinheiro.
O
movimento deve especialmente atingir todos os alienados, os
insatisfeitos e os descontentes, todos os que reconhecem e sentem nas
entranhas que há algo de muito errado, que o sistema criado pelo Partido
de Wall Street criou não só é bárbaro, antiético e moralmente errado,
mas também está falido.
Tudo
isso tem de ser unido democraticamente em uma oposição coerente, que
também tem de contemplar livremente com o que se parecem uma cidade
alternativa, um sistema político alternativo e, por fim, uma forma
alternativa de organizar a produção, distribuição e consumo para o
benefício do povo. Se não o fizer, o futuro para os jovens — que se
encaminha para uma crescente dívida privada e austeridade pública
profunda, em benefício ao 1% — não é um futuro.
Em resposta ao movimento Ocupem Wall Street,
o Estado, apoiado pelo poder da classe capitalista, tem um argumento
surpreendente: ele, e só ele, tem o direito exclusivo de regular e
organizar o espaço público. O público não tem o direito comum ao espaço
público! Com que direito prefeitos, chefes de polícia, oficiais
militares e autoridades do Estado dizem ao povo que têm o direito de
determinar o que é público em “nosso” espaço público e quem pode ocupar
esse espaço? Quando consideram de seu interesse expulsar-nos (o povo) de
qualquer espaço que nós (o povo) decidamos ocupar coletiva e
pacificamente, dizem que agem no interesse público (e se referem a leis
para prová-lo). Mas nós somos o povo! Onde está “nosso interesse” nisso
tudo? E, aliás, não é “nosso” dinheiro que os bancos e financistas usam
tão descaradamente para acumular “seus” bônus?
Diante
do poder organizado do Partido de Wall Street de dividir e conquistar, o
movimento que está emergindo também deve ter como um de seus princípios
fundadores não se dividir, nem se desviar de seu curso até que o
Partido de Wall Street caia na real — e perceba que o bem comum tem de
prevalecer sobre os estreitos interesses do dinheiro — ou de joelhos. Os
privilégios das corporações — ter todos os direitos dos indivíduos, sem
as responsabilidades de verdadeiros cidadãos — têm de ser eliminados.
Os bens públicos, como educação e saúde, têm de ser oferecidos
publicamente e acessíveis a todos. Os poderes monopolistas na mídia têm
de ser abalados. A compra de eleições tem de ser considerada
inconstitucional. A privatização do conhecimento e cultura precisa ser
proibida. A liberdade de explorar e despossuir outras pessoas deve ser
controlada e, no fim, impedida.
Os
estadunidenses acreditam na igualdade. Pesquisas de opinião pública
mostram que, para a população (independentemente da filiação
partidária), os 20% poderiam ter 30% da riqueza total. O fato de os 20%
mais ricos deterem 85% da riqueza é inaceitável. O fato de que a maior
parte disso seja controlada pelos 1% mais ricos é totalmente
inaceitável. O que o movimento Ocupem Wall Street propõe é que
nos comprometamos a reverter esse nível de desigualdade, não só de
riqueza ou salários, mas, ainda mais importante, o poder político que
essa disparidade gera. O povo estadunidense tem orgulho, com razão, de
sua democracia, mas ela está à mercê do poder de corromper do capital.
Agora que é dominada por esse poder, o tempo de fazer outra Revolução
Americana, como Jefferson sugeriu ser necessário há muito tempo, está se
aproximando: e que seja baseada em justiça social, igualdade e cuidado e
contato consciente na relação com a natureza.
A
luta que se criou — o Povo contra o Partido de Wall Street — é crucial
para nosso futuro coletivo. A luta é global, assim como local, em sua
natureza. Reúne estudantes confinados a uma luta de vida ou morte contra
o poder político no Chile, para criar um sistema de educação gratuito e
de qualidade para todos, desmantelando o modelo neoliberal que Pinochet
impôs brutalmente. Engloba os ativistas da praça Tahrir, que reconhecem
que a queda de Mubarak (como o fim da ditadura de Pinochet) foi apenas o
primeiro passo de uma luta para emancipar-se do poder do dinheiro.
Inclui os indignados da Espanha, os trabalhadores em greve na Grécia, a
oposição militante que surge em todo o mundo, de Londres a Durban,
Buenos Aires, Shenzhen e Mumbai. A dominação brutal do grande capital e o
poder do dinheiro estão na defensiva em todo lugar.
De
que lado estaremos, nós, indivíduos? Que rua vamos ocupar? Só o tempo
dirá. Mas o que sabemos é que o tempo é agora. O sistema não está só
quebrado e exposto, mas também é incapaz de qualquer resposta a não ser a
repressão. Então nós, o povo, não temos outra opção senão lutar pelo
direito coletivo a decidir como o sistema será reconstruído e com base
em qual modelo. O Partido de Wall Street teve sua vez e fracassou
miseravelmente. Como construir uma alternativa em suas ruínas é tanto
uma oportunidade inescapável quanto uma obrigação que nenhum de nós pode
ou vai querer deixar de lado.
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* David Harvey
é um dos pensadores marxistas mais influentes da atualidade,
reconhecido internacionalmente por seu trabalho de vanguarda na análise
geográfica das dinâmicas do capital. É professor de antropologia da
pós-graduação da Universidade da Cidade de Nova York (The City
University of New York – Cuny) na qual leciona desde 2001. Foi também
professor de geografia nas universidades Johns Hopkins e Oxford. Seu
livro Condição pós-moderna (Loyola, 1992) foi apontado pelo The Independent
como um dos 50 trabalhos mais importantes de não ficção publicados
desde a Segunda Guerra Mundial. Seus livros mais recentes, além de O enigma do capital (Boitempo), são: A Companion to Marx’s Capital (Boitempo, no prelo) e O novo imperialismo (São Paulo, Loyola, 2004).
Texto disponível em www.outraspalavras.net/2012/04/04/david-harvey-o-ultra-capitalismo-encontrou-um-adversario/