02 Abril 2012 -Agência Patrícia Galvão
(Débora Diniz, especial para O Estado de S. Paulo)
Ainda
estou para entender o que os magistrados brasileiros descrevem como
“realidade”. Muito antes da pós-modernidade, essa palavra provocava
tremores nos cientistas sociais. A realidade depende de quem a descreve
e, mais ainda, de quem experimenta sua concretude na própria pele. A
tese de que o Direito precisa se “adequar às mudanças sociais” foi a
sustentada pela ministra do Superior Tribunal de Justiça Maria Thereza
de Assis Moura para inocentar um homem adulto que violentou sexualmente
três meninas de 12 anos. Não haveria absolutos no direito penal,
defendeu a ministra, pois os crimes dependem da “realidade” das vítimas e
dos agressores. Foram as mudanças sociais que converteram as meninas em
prostitutas ou, nas palavras da ministra Maria Thereza, “as vítimas, à
época dos fatos, lamentavelmente, já estavam longe de serem inocentes,
ingênuas, inconscientes e desinformadas a respeito do sexo”.
“Já estavam longe” foi um recurso discursivo que atenuou o sentido
imperativo do julgamento moral da ministra sobre as meninas. Uma forma
clara de traduzir seu pronunciamento sobre o caso é ignorar a atenuante e
reler os adjetivos por seus antônimos. “As meninas eram culpadas,
maliciosas, conscientes e informadas a respeito do sexo”, por isso não
houve crime de estupro. Para haver crime de estupro, segundo a tese da
ministra, é preciso desnudar a moral das vítimas, mesmo que elas sejam
meninas pré-púberes de 12 anos. O passado das meninas - cabuladoras de
aulas, segundo o relato da mãe de uma delas, e iniciadas na exploração
sexual - foi o suficiente para que elas fossem descritas como
prostitutas. Apresentá-las como prostitutas foi o arremate argumentativo
da ministra: não houve crime contra a liberdade sexual, uma vez que o
sexo teria sido consentido. O agressor foi, portanto, inocentado.
Descrever meninas de 12 anos como prostitutas é linguisticamente
vulgar pela contradição que acompanha os dois substantivos. Não há
meninas prostitutas. Nem meninas nem prostitutas são adjetivos que
descrevem as mulheres. São estados e posições sociais que demarcam
histórias, direitos, violações e proteções. Uma mulher adulta pode
escolher se prostituir; uma menina, jamais. Sei que há comércio sexual
com meninas ainda mais jovens do que as três do caso - por isso, minha
recusa não é sociológica, mas ética e jurídica. O que ocorria na praça
onde as meninas trocavam a escola pelo comércio do sexo não era
prostituição, mas abuso sexual infantil. O estupro de vulneráveis
descreve um crime de violação à dignidade individual posterior àquele
que as retirou da casa e da escola para o comércio do sexo. O abuso
sexual é o fim da linha de uma ordem social que ignora os direitos e as
proteções devidas às meninas.
Meninas de 12 anos não são corpos desencarnados de suas histórias. As
práticas sexuais a que se submeteram jamais poderiam ter sido descritas
como escolhas autônomas - o bem jurídico tutelado não é a virgindade,
mas a igualdade entre os sexos e a proteção da infância. Uma menina de
12 anos explorada sexualmente em uma praça, que cabula aulas para vender
sua inocência e ingenuidade, aponta para uma realidade perversa que nos
atravessa a existência. As razões que as conduziram a esse regime de
abandono da vida, de invisibilidade existencial em uma praça, denunciam
violações estruturais de seus direitos. A mesma mãe que contou sobre a
troca da escola pela praça disse que as meninas o faziam em busca de
dinheiro. Eram meninas pobres e homens com poder - não havia dois seres
autônomos exercendo sua liberdade sexual, como falsamente pressupôs a
ministra.
O encontro se deu entre meninas que vendiam sua juventude e inocência
e homens que compravam um perverso prazer. Sem atenuantes, eram meninas
exploradas sexualmente em troca de dinheiro.
Qualquer ordem política elege seus absolutos éticos. Um deles é que
crianças não são seres plenamente autônomos para decidir sobre práticas
que ameacem sua integridade. Por isso, o princípio ético absoluto de
nosso dever de proteção às crianças. Meninas de 12 anos, com ou sem
história prévia de violação sexual, são crianças. Jamais poderiam ser
descritas como “garotas que já se dedicavam à prática de atividades
sexuais desde longa data”. Essa informação torna o cenário ainda mais
perverso: a violação sexual não foi um instante, mas uma permanência
desde muito cedo na infância. Proteger a integridade das meninas é um
imperativo ético a que não queremos renunciar em nome do relativismo
imposto pela desigualdade de gênero e de classe. O dado de realidade que
deve importunar nossos magistrados em suas decisões não é sobre a
autonomia de crianças para as práticas sexuais com adultos. Essa é uma
injusta realidade e uma falsa pergunta. A realidade que importa - e nos
angustia - é de que não somos capazes de proteger a ingenuidade e a
inocência das meninas.
* Debora Diniz é professora da UNB e pesquisadora da Anis: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero
Fonte: http://www.feminismo.org.br/livre/index.php?option=com_content&view=article&id=99993156:nao-ha-meninas-prostitutas-diz-antropologa&catid=131:direitos-humanos&Itemid=538
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