Em alguns momentos da história o Direito é
testado a respeito da sua verdadeira força constitutiva na vida das
pessoas, de um grupo social determinado ou de uma nação. Compartilhei
com o Supremo alguns destes debates, na condição de Ministro da Justiça
e lembro-me de dois deles, que foram lapidares. Testaram os limites do
projeto democrático em curso que, como se sabe, não partiu de uma
ruptura do regime militar, mas de um acordo “pelo alto”, legitimado
pelo processo constituinte, que consagrou as liberdades políticas e
produziu a vigorosa Constituição de 88.
O “teste” da importância
da Constituição na vida de um povo é tanto político, como jurídico. O
teste mais forte, no entanto, sempre faz o “político” e o “jurídico”
convergirem para o que grandes juristas designam como “força normativa
da Constituição”. Esta força normativa é a síntese entre a
“Constituição real” (pela qual o direito realiza-se orientado não
somente pela lei, mas também pela força do dinheiro, da cultura, da
possibilidade que os grupos e classes tem de influenciar os tribunais), e
a “Constituição formal”, ou seja, com aquelas influências limitadas no
disposto como direito positivo, declarado pelo poder constituinte.
A
demarcação da “Raposa Serra do Sol” e o debate que ficou conhecido como
“revisão da Lei da Anistia” (a mídia propagou errônea e
deliberadamente que pretendíamos a “revisão” da Lei e não a sua
“interpretação”), foram dois destes casos. Ambos poderiam ser decididos
livre e coerentemente, na sistemática legal atual, para qualquer lado:
poder-se-ia decidir que o território era contínuo e assim beneficiar as
comunidades indígenas (que foi a decisão do STF), ou dizer que o
território indígena deveria ser descontínuo e segmentado e, desta forma,
beneficiar-se-ia os que ali se localizavam de boa fé, cometendo crimes
ambientais e ocupando terras da União.
Tanto no primeiro como
no segundo caso, dois valores se opunham. No caso “Raposa” o direito
imemorial dos indígenas, de um lado e, de outro, a posse de boa fé, das
famílias instaladas para produzir para o mercado e para a sua
subsistência. No segundo caso (“Anistia para os torturadores”), dois
valores também estavam claramente em oposição: o respeito pleno,
integral e imprescritível aos direitos humanos, por qualquer estado em
qualquer circunstância, de um lado e, de outro, um suposto contrato
político na transição. Este contrato, segundo o caminho então tomado
pelo Supremo, permitira - “legalmente” - que os promotores ou, no
mínimo, os coniventes com as torturas, pudessem “contratar” a anistia
para os que torturaram e mataram nos cárceres do estado. E o fizeram
contra custodiados indefesos, fora do cenário da luta revolucionária, na
qual estes já estavam militarmente derrotados.
A dupla e às
vezes múltipla possibilidade de interpretação de um dispositivo
constitucional gera oportunidades de escolha do intérprete, a partir de
valores que estão pré-supostos na sua história individual e social. Nos
casos de grande repercussão sobre os “fundamentos do estado de direito”
(igualdade perante a lei e inviolabilidade dos direitos), estas
escolhas são sempre de natureza política e balizadas pelas grandes
questões históricas que o país enfrenta. Vejamos um caso interessante e
muito apropriado, para se refletir sobre o que está acontecendo no país
com o chamado julgamento do “mensalão”.
É um caso de direitos
civis, famoso na jurisprudência da Suprema Corte Americana (109 U.S. –
1883), no qual a interpretação da Lei dos Direitos Civis de 1875 - que
outorgara o direito dos negros americanos usarem hospedarias, teatros,
transportes públicos e outros espaços públicos e privados - opunha dois
valores bem nítidos: o sistema federal, em construção dolorosa depois de
uma sangrenta guerra civil, de um lado, e, de outro, a dignidade da
pessoa humana sustentada pela Lei dos Direitos Civis. Principalmente no
sul do país, com a reação dos remanescentes racistas e escravagistas -
cuja força política persistiu até a década de 60 do século XX - vários
estados se negavam à aplicação da Lei dos Direitos Civis e se amparavam
no “pacto federativo”, cujas cláusulas permitiriam a independência
“interpretativa” sobre o alcance das referidas normas de proteção dos
direitos civis.
Nesta atmosfera tensa, a Suprema Corte
sentenciou que a 14ª. Emenda não havia dado um mandato claro ao
Congresso para “proteger” os direitos civis, “senão o poder para
corrigir os abusos dos Estados”. Esta decisão, que diferencia
“proteção”, de “correção de abusos”, no caso concreto - das polícias,
dos brancos e dos governos - contra os negros, mostra a brutal
distinção na aplicação da lei e da Constituição, que pode se originar
dos valores que orientam a interpretação de um Tribunal.
O Juiz
Bradley - relator do processo - escolheu a visão da processualidade que,
segundo ele, estaria contida na 14ª Emenda, pois estava convicto que
deveria ocorrer “algum estágio” na transição do ser humano, de ‘coisa’
(o negro), para que todos chegassem à condição do ‘ser humano’ (branco),
estatuto reservado para parte da população naqueles estados. O Juiz
Harlan, que divergiu, denunciou a trama interpretativa: “Não posso
resistir à conclusão que a substância e o espírito da recente Emenda à
Constituição tem sido sacrificados pela crítica verbal, hábil e
engenhosa”.
O valor “federalismo”, naquele caso concreto, foi
escolhido para fundamentar uma decisão racista, “atenuando” os efeitos
da 14ª Emenda, que respaldara abertamente os direitos civis e
sintetizara uma “revolução democrática”, em curso na nação americana.
O
Ministro Celso Mello (Relator da Extradição 633-9, República Popular da
China - Pleno - DJ 16.02.01-unânime) já passou por situação análoga, na
qual negou a extradição de cidadão chinês, acusado de crimes graves
naquele país, porque ali os Tribunais “não levam em consideração os
argumentos da defesa, nem consagram o princípio da presunção da
inocência”. Neste julgamento o Ministro Celso Mello optou claramente -
na escolha entre valores que se apresentam em cada processo concreto -
por um valor fundante do Direito Penal, nas sociedades democráticas: “a
presunção da inocência”. Ou seja, entre o valor “aplicação correta e
formal do direito interno chinês”, de um lado (que seria uma das
possibilidades para dar legitimidade à extradição) e, de outro lado, o
valor “princípio da presunção da inocência” (que serviria para negar a
extradição) o princípio da “presunção da inocência” teve o peso
decisivo.
O Ministro Lewandowsky, que escolheu o princípio da
presunção da inocência e o fundamentou, nos casos de Genoino e Dirceu,
tem sido hostilizado, não só na imprensa como em alguns lugares
públicos. O ministro Joaquim Barbosa, guindado à condição de herói
nacional pela revista Veja, tem sido aplaudido e incensado pela imprensa
em lugares públicos. Conhecendo e respeitando a integridade de ambos,
imagino que mesmo em situações - que são meramente conjunturais -
diferentes, devem estar se perguntando porquê tudo isso. Ambos
cumpriram os seus deveres como Ministros da Corte mais alta da
República, mas recebem reações diferenças, na sociedade e na imprensa.
Não pende, sobre nenhum dos dois, qualquer mancha moral e ninguém duvida
dos seus conhecimentos e da sua capacidade como juristas, mas eles tem
um tratamento jornalístico e social desigual. Por quê?
Quero
opinar um pouco sobre isso, porque creio estarmos num momento importante
da vida democrática nacional. E a minha opinião não é sobre fatos e
condutas, que determinaram o processo judicial em julgamento, porque, a
não ser a respeito de Genoino, de quem fui amigo pessoal por décadas
(poderia depor a respeito da sua integridade moral e sua honestidade e
sobre a convicção de que não teve nenhuma conduta dolosa), não convivi,
não conheço a personalidade, a vida pessoal e mesmo política de maneira
suficiente, de nenhum dos outros réus. Sobre José Dirceu e os demais
réus, não posso ter juízo “jurídico” sobre os fatos que ensejaram a ação
penal, mas posso afirmar, também sobre José Dirceu - que é a
personalidade mais forte do julgamento - que certamente foi condenado
sem obediência ao princípio da presunção da inocência.
O
processo judicial em curso, pela massiva campanha condenatória que
precedeu o julgamento, tornou-se um processo político e altamente
politizado. Foi anulado dramaticamente o significado pedagógico e
moral, que ele poderia ter para o futuro democrático do país, se o
princípio da presunção da inocência fosse observado e o espírito de
linchamento não tivesse sido disseminado, como foi. Não se trata, em
consequência, de “defender” - como foi inculcado no senso comum -
Genoino e Dirceu. Ou de atacar, tal ou qual grupo de comunicação, ou
mesmo de discutir os argumentos do Procurador Geral ou da defesa dos
réus, por dentro do processo: o verdadeiro julgamento foi no paralelo
político.
Trata-se, portanto, de avaliar como chegamos - em
plena democracia política - a uma situação que lembra a hipotética ou
real manchete de um jornal soviético, na era stalinista: “Hoje serão
julgados e condenados os assassinos de Kirov”. Lewandowky e Joaquim
Barbosa estão sendo eventualmente recebidos de maneira diferente, nos
lugares que frequentam, pelos mesmo motivos: os réus já tinham sido
julgados. Um, pelas suas convicções, disse que a sentença midiática
estava - vejam bem - apenas parcialmente errada. Outro, pelas suas
convicções, disse que ela estava totalmente certa. O julgamento judicial
foi um julgamento político e a síntese, que resultou do embate entre
valores pré-supostos na interpretação, foi doce para a direita política
irracional que dominou a mídia, mas amarga para a esquerda que vem
governando o país dentro da democracia.
O embate de valores, que
ocorreu neste julgamento, é exemplar para a reforma democrática que
nos desafia de imediato, foi o seguinte: de um lado o “princípio da
presunção da inocência” e, de outro, o controle “unilateral da formação
da opinião”, que, ao não conseguir provas suficientes para condenação,
enquadrou o senso comum e o próprio Supremo, na certeza de que o
julgamento é feito antes e “por fora” dos Tribunais. E, assim, serão
incensados os que aceitarem este controle e serão amaldiçoados os que se
rebelarem contra ele.
Talvez este julgamento tenha uma virtude:
sirva para coesionar um campo democrático amplo, para atacar a principal
chaga da democracia brasileira, que é o sistema político atual, fundado
no financiamento privado das campanhas e nas alianças regionais sem
princípio. Se não atentarmos para isso, rapidamente, merecemos este
julgamento, no qual a presunção da inocência foi sacrificada no altar da
“teoria do domínio funcional dos fatos”.
Na verdade, como o
julgamento foi principalmente político, embora dentro de todos os
parâmetros da legalidade constitucional, ele não terminará em breve. Vai
continuar. E o principal erro que poderemos cometer será utilizar esta
jurisprudência contra os adversários da revolução democrática em curso,
desejando e propagando que eles devem ser condenados sem provas, com
linchamentos prévios pela mídia. Aliás, isto é impossível, porque eles é
que tem o domínio funcional dos fatos através da grande mídia.
===
(*) TARSO GENRO é Advogado, Político, Ex-Ministro da Justiça e atualmente Governador do Estado do Rio Grande do Sul.