EM DEFESA DO DIREITO AO PROTESTO: um
diálogo a partir das ruas[i]
Daniela Felix
Primeiramente: #FORATEMER!!!
Dedico este texto às Mulheres.
Sim às Mulheres, pois o ano de 2015 foi um dos anos mais
simbólicos às pautas de gênero e feminismos. Nós fomos as principais
protagonistas dos movimentos que se insurgiram contra a opressão. Vimos Meninas
Estudantes enfrentando tropas nos Colégios de São Paulo. Vimos Companheiras
nossas tendo seus corpos agredidos, torturados, mutilados e violados, pela
brutalidade do machismo. Vimos uma Presidenta legitimamente eleita sendo
deposta por um golpe, que, dentre tantos adjetivos, o principal foi: misógino.
Com tudo que vivenciamos ficou e temos como presente que nenhum passo à diante
será dado sem que nós estejamos juntas.
A revolução será feminista ou não será!
1. Local de fala como meio de
aproximação: quem sou?
Mulher, Feminista, Militante de Direitos Humanos.
Professora de Direitos Humanos e Prática Jurídica do Cesusc;
Mestre em Direito pela UFSC, na área da Criminologia Crítica, tendo pesquisado
o “CONTROLE PENAL ATUARIAL E PRISÃO CAUTELAR”, sob a orientação da Profa. Vera
Regina Pereira de Andrade, firmando um diálogo sobre a teoria e a prática das
políticas criminais contemporâneas e as políticas de segurança pública, mais
detidamente no Brasil.
Além, sou Advogada há mais de 1 década, dentro de um campo
pouco conhecido na academia, que é a Advocacia Popular, sendo atualmente
articuladora da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares – RENAP e
compondo os Coletivos de Gênero Marietta Baderna, Catarina de Advocacia Popular
e, mais recentemente, a Frente de Juristas Pela Democracia em SC.
Falar sobre a Advocacia Popular iria demandar um capítulo à
parte, mas importa aqui destacar, que as Advogadas e Advogados Populares, são
aqueles profissionais que atuam junto aos Movimentos Sociais, ex.: MST, MTST,
MAB, Movimentos Feministas, Movimentos Indígenas, Movimentos Quilombolas,
Movimentos Ambientais, com especial carinho menciono o MPL, espaço onde há
alguns anos contribuímos com as lutas, e mais recentemente o Contrataque, Ocupa
MinC e a Rede Fora Temer.
A atuação do campo jurídico, por sua vez, é algo mais amplo
que a mera defesa em processos. Exige, além da compreensão do que são
Movimentos Sociais, suas pautas, agendas e contributo em estratégias que somem
às lutas pelas realizações de direitos. Voltarei a este assunto na sequência.
Faço sempre esta localização do meu local de fala, para
situar o meu interlocutor de onde partem as minhas análises, que, no caso, são
uma mescla entre teoria, empiria e prática.
E, para melhor propor este diálogo, estabeleci algumas
perguntas centrais sobre o tema e a partir delas construindo uma narrativa que
parte das ruas ao campo jurídico penal.
2. O que dizem as ruas?
Primeiro movimento que precisamos
fazer é nos perguntarmos: o que gritam as ruas?
Penso, que não podemos estabelecer
um diálogo sem que antes a gente se pergunte quais as pautas, agendas e pleitos
que permeiam as manifestações populares.
Em uma breve consulta à minha (às
vezes falha) memória, vem à cabeça: a defesa do Estado Democrático de Direito,
a defesa da Constituição, o direito à Cidade, o direito à mobilidade, o direito
ao próprio corpo, o direito de existir, a cultura da não violência, o direito à
saúde pública, o direito à educação pública e de qualidade, o direito à
moradia, o direito à demarcação de terras, a declaração da função social da
propriedade, o direito à justa remuneração pela sua força de trabalho, o
direito ao meio ambiente, dentre tantos outros.
Pergunto a vocês: qual o amparo
legal de todos (ou quase todos) os direitos que listei brevemente acima?
Alguns lembrarão e dirão: a
CONSTITUIÇÃO!
Sim, é ela que diz tudo isso.
Da mesma forma, é ela que tantas e tantos buscam a realização
de seus direitos e de suas garantias e é a rua que dá visibilidade a tudo isso,
ou seja, as pessoas, os movimentos sociais, populares, organizados,
desorganizados, sindicatos, classe trabalhadora, sempre se utilizaram dos
espaços públicos como seus espaços de lutas, uma vez que nem sempre o campo da
institucionalidade tem a capacidade ou interesse de ouvir as críticas ou as
demandas a eles direcionadas.
Para esses embates que buscam de intervenção e mudança da
estrutura social, as ruas são, muitas vezes, o local de maior liberdade e,
nessa ótica, Boaventura de Sousa Santos
afirma que:
Um País, ao limitar drasticamente os direitos
econômicos e sociais dos cidadãos, aceita o sequestro da democracia pelo
capital financeiro internacional, enquanto os cidadãos, atônitos entre a
irrelevância de seus direitos políticos, sob as instituições democráticas,
descobre nas ruas das cidades o único espaço público ainda não colonizado pelos
mercados. Aí exercem esses direitos à beira do desespero e desprovidos de
formulação política alternativa.
3. O que são os Movimentos Sociais?
Bom, não vou me ater aqui ao
detalhamento teórico acerca dos movimentos sociais, que existe e é um debate
extremamente valioso, com teóricos e acadêmicos importantíssimos, mas sim, trazer
uma breve definição a partir de Eva
Maria Lakatos[ii],
que os movimentos sociais derivam das insatisfações e das contradições
existentes na ordem política, social, econômica ou cultural estabelecidas, isto
é, têm início a partir de grupos sociais e apresentam certo grau de organização
e de continuidade. Ressalta-se que esta organização não se traduz
necessariamente em organização jurídica.
Denota-se ainda, que esta forma de
organização de parcelas da população em torno de uma agenda ou uma pauta estão presentes
em todas as sociedades, vinculados a um determinado contexto histórico,
organizados e unidos por aspirações concretas, orientadas para uma mudança do status quo, devem ser considerados como fenômenos
essenciais aos processos de mudança das sociedades, dadas a partir do conflito
social, especialmente nos períodos de desequilíbrios do desenvolvimento
democrático.
Ainda, importa dizer que os movimentos sociais são uma arena
crucial para a compreensão de como esses entrelaçamentos, talvez precário, mas
vital, do cultural e do político ocorrem na prática.
A ênfase na luta implica considerar que a força da
resistência está no encontro entre opressores e oprimidos. Desse modo, cada
sociedade ou estrutura social teria como cenário um contexto histórico no qual,
estaria posto um conflito entre classes, a depender dos modelos culturais,
políticos e sociais.
Desta forma, tomando como pressuposto a condição política
nacional da atualidade, temos dois movimentos de extrema complexidade, mas que
mostram evidentemente a luta de classes e a luta contra a opressão do modo de
produção capitalista e da globalização (neo)liberal.
4. Qual o contexto das cidades
(urbano)
Analisando o contexto atual e
especificamente urbano, o que vemos são Cidades extremamente contraditórias, no
qual o projeto dado a partir da Constituição de 1988, nunca foi construído,
efetivado ou implementado.
Ou seja, vimos nascer um projeto de
Brasil legalmente inclusivo, protetor, garantidor, mas nunca vimos as folhas ou
colhemos seus frutos de maneira igualitária.
O projeto de sistema capitalista neoliberal global, iniciado
no Brasil 2 anos após a promulgação da Constituição de 1988, não quis e sequer
tentou realizar as promessas ali estabelecidas.
Diante disso, num processo crescente do racismo ambiental,
que passou a operar com muita força nos grandes centros urbanos, vimos aumentar
a segmentação entre concentração de riqueza e espoliados, além, claro, do
processo de mercantilização dos bens e serviços essenciais.
Não vimos, por sua vez, a implementação de planos essenciais
ao desenvolvimento social democrático, como o Plano Diretor, o Plano de
Mobilidade, Reforma Urbana, respeito ao meio ambiente, ao saneamento, ao
desenvolvimento metropolitano, que leva, sem dúvida alguma, ao acirramento das
relações entre poder público e as Cidadãs e Cidadãos atingidos pelas suas
ausências.
Enquanto isso, a classe mais abastada e economicamente
privilegiada passa imune a qualquer impacto que a não assistência do Estado
possa causar.
Consolidamos, assim, o que David Harvey denomina como ‘gentrificação’, onde os espaços urbanos
ou a aparente substituição de paisagens de caráter popular por construções
típicas de áreas nobres, sobretudo em função da valorização acentuada e do
enobrecimento de uma área antes considerada periférica. Transformando o Cidadão
naquele sujeito que pode pagar pela sua permanência nela.
5. Quem é o principal oponente?
Por certo o principal oponente é o
Estado e a construção dos processos democráticos da administração pública,
responsáveis pela efetivação de direitos e garantias essenciais à vida em
sociedade.
6. Então, que Estado é esse e a quem
representa?
Como já dito, este Estado é o que
pode ser classificado como: estado-capitalista-neoliberal-global-machista-poluente,
o ente que representa o interesse do capital e de seus investidores.
Não é, dentro do contexto atual,
aquele que irá se comprometer com a efetivação das políticas públicas que
incluam todas as Cidadãs e todos os Cidadãos, independente de classe, raça,
gênero, opção sexual, religião, dentre outras tantas pluralidades.
Não se enganem!
7. E qual a função do Sistema de
Justiça Criminal neste contexto?
É aí, justamente às enganadas e aos
enganados, que estes mecanismos de controle social formais entram em cena!
São eles: Polícias e
Segurança Pública, Ministério Público e Poder Judiciário.
E o que vemos historicamente, e hoje
está ainda mais evidente, são os filtros da seletividade que estas
institucionalidades têm operado, demonstrando finalidades e interesses
concretos, e, para tanto, faz-se o uso de seus mecanismos como medida de
contenção, sejam de movimentos ou partido político.
Esses mecanismos e aparatos repressivos, seja pelo discurso
da legalidade ou pelo uso da força, têm servido de justificativa à
criminalização dos campos de lutas, utilizando-se, principalmente, o discurso
de lei e ordem.
Há de se demarcar que ordem pública, por sua vez, é um conceito
vago e impreciso, fruto da legislação autoritária do período entre guerras, e é
subterfúgio para o julgamento mais conservador dos atores do direito, que
visualizam como crime estas novas demandas sociais que se apresentam no regime
Democrático.
Entender que a ação coletiva de ocupação das ruas, praças,
pontes coloca em risco a ordem pública e que, portanto, se pode
indiscriminadamente atacar com o aparato bélico “menos letal”, ou segregar
cautelarmente seus mlitantes, como é o caso do flagrante forjado de um Cidadão
na manifestação de 06 de setembro, é entender que na Democracia não cabe o
conflito e negar a existência de problemas sociais históricos que o capitalismo
não conseguiu e sequer pretendeu resolver.
Para Marilena Chauí[iii]
aqueles que se vinculam à tradição liberal da Democracia vêm como “o regime da
lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais”, o que redunda na
nesta tentativa de conter os conflitos sociais. Esquecem, segundo ela que
“democracia, mais que respeito às leis estabelecidas, é conflito”. A Democracia
é “a única forma da política que considera o conflito legítimo”.
Ainda, a paz não é a simples ausência de guerra. Uma cidade
na qual a paz depende da inércia dos súditos deve mais corretamente ser chamada
de solidão que de cidade.
O reconhecimento por parte do Poder Judiciário de que o
conflito não é inerente ao regime Democrático, não é isolado, infelizmente. Estamos
resgatando muitos entulhos autoritários ainda vigentes em nossa legislação, ou
construindo novas leis autoritárias (caso da Lei Antiterrorismo), como o
objetivo de criminalizar as ações dos movimentos sociais, maculando, assim, o
apoio de muitos setores da sociedade civil e de autoridades da República, o que
é muito grave.
8. Por fim, e não menos importante, quem
está perdendo?
Aqui levanto alguns apontamentos à
reflexão, sem aprofundá-los:
a) Estamos diante de um processo
concreto de criminalização dos Movimentos Sociais e de seus militantes;
b) Estão sendo operadas, via de regra, a
partir de Ações nos Juizados Especiais;
c) Entendo, por oportuno, o juizado
especial criminal como a maior falácia, ante a justificativa do “menor
potencial ofensivo”, pois é justamente pela transação ou pela conciliação, que
estamos vivenciando a maior e mais assustadora expansão do controle social,
pela via da justiça penal;
d) Perdemos a capacidade do diálogo com
os atores nos quais são responsáveis pelas nossas pautas e agendas. Hoje a
única institucionalidade de enfrentamento com os protestos e manifestações são
as polícias militares, que em grande medida se colocam como “atores” (que não
são!) de mediações. Contudo, e importa muito destacar, A POLÍCIA MILITAR NÃO É
ENTIDADE DE ASSISTÊNCIA SOCIAL, ou detém o poder/dever conciliatório que
pleiteiam as vozes das ruas. Querem que, no mínimo, as autoridades competentes
desçam dos seus castelos e venham propor diálogo. Evitando, assim, que os
manifestantes se acorrentem no SETUF pra ter uma planilha que deveria, pela Lei
de Acesso à Informação, ser pública (MPL, 2012).
e) Enfim, vejo claramente que vivemos um
Estado de Polícia, onde o Ministério Público e o Poder Judiciário são
igualmente responsáveis.
Concluo dizendo: estamos sim vivendo um Estado de Exceção
(cf. Agambem).
[i] Texto elaborado para a Palestra “Em Defesa do Direito
de Protesto”, promovida pela Faculdade Cesusc, Florianópolis (SC), 07 de
outubro de 2016 e publicado na estrei da Minha Coluna (Daniela Felix), no Portal
Catarinas. (Acessível também em catarinas.info).
[ii] Cf. LAKATOS, Eva Maria. Sociologia Geral. São Paulo,
Atlas, 1985.
[iii] CHAUÍ, Marilena. Chauí defende veia conflituosa da
democracia. Folha de São Paulo, São Paulo, 25 ago. 2006. Ilustrada, Caderno
E-4. 50 Ibid. 51 Ibid. contraponto legal para a luta dos trabalhadores e
trabalhadoras rurais sem terra é a Constituição da República Federativa do
Brasil, de 1988.
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