terça-feira, 3 de novembro de 2009

[Autores & Artigos] Punir os pobres, de Loïc Wacquant




Companheir@s,
Segue mais um artigo de Loïc Wacquant, sobre a famigerada "tolerância zero" no contexto dos movimentos de lei e ordem (políticas ideológicas de contenção da criminalidade por via da maximização do sistema carcerário), que opera dentro da mesma lógica da modernidade capitalista ocidental: a seletividade.
Infelizmente, as politicas criminais e de segurança pública continuam a trilhar soluções pautadas nesta lógica genocida.
Quanto mais estudo e penso, maior é a lucidez, que, por consequência, maior é o desespero em relação aos prognósticos futuros...
Que sociedade é esta que ainda conceitua e preconceitua as pessoas como "homem de bem" e "mulher honesta"? Exemplo do preconceito à mulher desonesta se deu na Universidade no estado de São Paulo - Caso da Aluna que foi para aula com um vestido muito curto.
Tá tudo errado... PAREM O MUNDO QUE EU QUERO DESCER! Até Passárgada é pura ilusão...
Beijos!



Punir os Pobres

Loïc Wacquant

Prólogo*

Os Estados Unidos, laboratório vivo do futuro neoliberal




A sociedade contemporânea, que alimenta a hostilidade entre o homem individual e todos os demais, produz, assim, uma guerra social de todos contra todos, que assume, inevitavelmente, em casos individuais, particularmente entre pessoas sem educação, uma forma brutal, bárbara e violenta – a do crime. Para se proteger do crime e dos atos diretos de violência, a sociedade requer um vasto e complexo sistema de corpos administrativos e judiciários, que demanda uma imensa força de trabalho.




FRIEDRICH ENGELS - Discurso de Elberfeld, 8 de fevereiro de 1845




A gesta pública sobre a "segurança" criminal (securité, Sicherheit, seguridad) – que surgiu repentinamente, no final do século XX, no cenário político dos países da União Européia, entre os quais, e no primeiro plano, a França, após ter invadido o espaço público nos Estados Unidos 20 anos antes – apresenta muitas características que a aproximam estreitamente da gesta pornográfica, a qual já foi descrita por suas analistas feministas.

Figuras e fontes da pornografia penal

Para começar, a gesta da segurança é concebida e executada não tanto por ela mesma, mas sim com a finalidade expressa de ser exibida e vista, examinada e espionada: a prioridade absoluta é fazer dela um espetáculo, no sentido próprio do termo. Para tal, as palavras e ações anti-crime devem ser metodicamente colocadas em porque, a exemplo dos confusões carnais pré-planejadas que povoam os filmes pornográficos, elas são extraordinariamente repetitivas, mecânicas, uniformes e, portanto, eminentemente previsíveis.
Assim, as autoridades responsáveis pela ordem pública dos diferentes governos que se sucedem num determinado país ou em diferentes países, em um dado momento, combinam, todos eles, com o mesmo ritmo entrecortado e com apenas umas poucas variações menores, as mesmas figuras obrigatórias com os mesmos parceiros: fazer patrulha numa estação de metrô ou num trem de subúrbio, exaltando as medidas anti-crime; visitar, em cortejo, o posto de polícia de um bairro mal afamado; deixar-se posar numa foto coletiva de vitória após uma batida de drogas anormalmente grande; fazer algumas advertências viris aos malfeitores para que, de agora em diante, eles "se comportem bem"; e lançar os faróis da atenção pública sobre os transgressores reincidentes, os mendigos agressivos, os refugiados errantes, os imigrantes que aguardam ser expulsos, as prostitutas de calçada e outros detritos sociais que se acumulam nas ruas das metrópoles fin-de-siècle, para a indignação dos cidadãos "respeitáveis".
Por toda a parte, ecoam as mesmas loas à devoção e à competência das forças da ordem, o mesmo lamento em relação à escandalosa complacência dos juízes, a mesma afirmação apressada em prol dos invioláveis "direitos das vítimas do crime", os mesmos anúncios tonitruantes prometendo ora "fazer baixar a delinqüência em 10% ao ano" (promessa que nenhum político arrisca lançar em relação ao número de desempregados), ora restaurar o controle do Estado sobre as "zonas do não-direito", ou ainda aumentar significativamente a capacidade das prisões, ao custo de bilhões de euros.
Resultado: o manejo da lei-e-ordem está para a criminalidade assim como a pornografia está para as relações amorosas, ou seja, um espelho que deforma a realidade até o grotesco, que extrai artificialmente os comportamentos delinqüentes da trama das relações sociais nas quais estão enraizados e fazem sentido, que ignora deliberadamente suas causas e seus significados, e que reduz seu tratamento a uma seqüência de iniciativas previsíveis, muitas vezes acrobáticas, às vezes até mesmo inverossímeis, resultante do culto do desempenho ideal, mais do que da atenção pragmática ao real. No final, a nova gesta da lei-e-ordem transforma a luta contra o crime em um titilante teatro burocrático-midiático que, simultaneamente, sacia e alimenta os fantasmas da ordem do eleitorado, reafirma a autoridade do Estado através de sua linguagem e de sua mímica viris, e erige a prisão como o último baluarte contra as desordens, que, irrompendo de seus porões, são vistas como capazes de ameaçar os próprios fundamentos da sociedade.
De onde vem esta curiosa maneira de pensar e de agir em relação à "segurança" que, entre as "funções básicas do Estado" identificadas por Max Weber – a elaboração das leis, a imposição da ordem pública, a defesa armada contra as agressões externas e a administração das "necessidades higiênicas, educativas, sociais e culturais" de seus membros – concede uma prioridade sem precedentes às suas missões de polícia e de justiça, e exibe com estardalhaço a capacidade das autoridades de submeter as categorias e os territórios indóceis à norma comum? E por que esta abordagem punitiva – que tem como alvos a delinqüência de rua e as vamente, os delitos criminosos pela ativação, em todas as direções, do aparelho penal – foi recentemente abraçada não somente pelos partidos de direita, mas também, e com um zelo espantoso, pelos políticos da esquerda governamental, de um extremo ao outro do continente europeu? Este livro pretende responder a estas perguntas, mapeando uma das maiores transformações políticas do último meio século e que, no entanto, passou desapercebida cientistas políticos e sociólogos especializados naquilo que convencionalmente se chamava, por histerese intelectual, de a "crise do Estado-providência": a erupção do Estado penal nos Estados Unidos e suas repercussões práticas e ideológicas em outras sociedades submetidas às "reformas" impulsionadas pelo neoliberalismo.
Com efeito, a impressionante experiência norte-americana da "guerra ao crime" impôs-se na década passada como referência obrigatória a todos os governos do Primeiro Mundo, fonte teórica e inspiração prática do endurecimento generalizado da penalidade, que se traduziu, em todos os países avançados, por um inchamento espetacular da população carcerária. De acordo com um relatório oficial de um especialista em segurança do governo francês, foi nos Estados Unidos – país "onde a imaginação está na ordem do dia" – que a inovação penal mostrou que "é possível fazer recuar a delinqüência real e o sentimento de insegurança subjetivo" por meio da ativação de políticas policiais, judiciárias e penitenciárias zelosas, focadas nas categorias marginais encontradas nas falhas e nos fossos da nova paisagem econômica3. Foi nos Estados Unidos que, dando as costas para toda e qualquer "complacência sociológica", a criminologia teria demonstrado que a causa do crime é a irresponsabilidade e a imoralidade pessoais do criminoso, e que a sanção implacável das "incivilidades" e de toda uma gama de desordens de pequena monta é o meio mais seguro para deter as infrações violentas.
Foi nas metrópoles norte-americanas que a polícia se teria mostrado capaz, devido à sua ação ofensiva, de "reverter a epidemia do crime" (segundo o título da autobiografia do chefe de polícia de Nova Iorque, Turnaround, que se tornou um best seller), ora pela aplicação da "tolerância zero", ora pela "co-produção" da segurança com os moradores das zonas deserdadas. Foi nos Estados Unidos que a prisão se teria revelado, no final das contas, um instrumento judicioso para domar "predadores violentos" e outros "criminosos incorrigíveis". E mais ainda, de acordo com um destacado jornalista do Le Monde "examinar com atenção as políticas repressivas nos Estados Unidos", em conjunção com as políticas urbanas desenvolvidas neste país, permitiria "abrir os nossos olhos para o que está sendo inventado lá, no dia-a-dia, e sem relação apenas com a obsessão punitiva: fórmulas de incitação à autonomia, apoiadas numa capacidade instituidora da sociedade civil".
O presente livro revela e desmonta/desmantela os mecanismos da lenda internacional de um Eldorado americano da lei-e-ordem, demonstrando como as categorias, práticas e políticas penais dos Estados Unidos se originam e se inscrevem na revolução neoliberal da qual este país é o crisol histórico e o ponta-de-lança planetário. Crescimento explosivo das populações aprisionadas, que aumentaram cinco vezes em 25 anos para ultrapassar os dois milhões de pessoas, e que se amontoam em condições de superpopulação que desafiam o entendimento; extensão continuada da colocação sob tutela judiciária, que hoje cobre cerca de sete milhões de americanos, o que corresponde a um homem adulto em 20 e a um jovem negro em três, graças ao desenvolvimento de tecnologias de informática e genética, e à proliferação dos bancos de dados criminais aos quais pode-se ter livre acesso a partir da Internet; decuplicação dos orçamentos e do pessoal das administrações penitenciárias, promovidas ao patamar de terceiro maior empregador do país, enquanto as despesas sociais sofrem cortes profundos e o direito ao auxílio público transforma-se na obrigação de trabalhar em empregos desqualificados e sub-remunerados; desenvolvimento frenético de uma indústria penitenciária privada, a menina dos olhos de Wall Street, que ganhou uma amplitude nacional e depois internacional, a fim de satisfazer à crescente demanda estatal por punição ampliada; direcionamento da vigilância policial e da repressão judiciária para os habitantes do gueto negro em declínio e para os delinqüentes sexuais, agora definitivamente rechaçados para as margens infamantes da sociedade; enfim, a difusão de uma cultura racializada da difamação pública do criminoso, avalizada pelas mais altas autoridades do país.
Em resumo, a irresistível ascensão do Estado penal nos Estados Unidos durante as três últimas décadas não é uma resposta ao aumento da criminalidade – que permaneceu praticamente constante, em termos globais, antes de cair no final do período –,mas sim aos deslocamentos provocados pela redução de despesas do Estado na área social e urbana e pela imposição do trabalho assalariado precário como nova norma de cidadania para aqueles encerrados na base da polarizada estrutura de classes.

As cargas materiais e simbólicas do encarceramento (continue lendo)
===
(* O texto está sem as notas de rodapé)
Fonte: Editora Revan - www.revan.com.br - texto

Nenhum comentário: