Companheir@s,
Fazendo uma apropriação das reflexões e leituras da semana, caí, mais uma vez, na complexa oposição (contraditória) dos perversos discursos de combate à droga, ao tráfico, ao usuário e às prisões.
Isso se deu, muito embora eu não tenha tido o atrevimento necessário para propor o debate, pela Conferência Livre proposta pela Polícia Civil de SC, na quinta, dia 16, em que alguns representantes das categorias que compõem os quadros da Polícia Civil, EU (Daniela Felix) e mais (não mais que) 10 outros representantes de outras instituições e da Sociedade Civil, para propor o debate dos eixos temáticos da Conferência Nacional e, ao final, elaborar proncípios e diretrizes a fim de compor o Caderno de Propostas da 1ª CONSEG.
POIS BEM. O diálogo e os debates foram, sob o meu ponto de vista, produtivos e, mesmo sentindo que o "estranho" causa desconforto, noto que ele pode vir a somar no produto final. Foi assim que me senti, pois mesmo que a proposta seja o diálogo democrático, inter e extra institucional, dadas as razões hierárquicas e funcionais, existe o medo de resistências de ordem subjetiva e política no contexto das relações de trabalho, o que reprime (em muito) o espírito crítico e construtivo da CONSEG, porém, um "alienígena crítico" apimenta o debate (auto-definição!), pois pode fazer oportunamente sem ferir (em tese) ou comprometer as relações entre as partes profissionais.
Na minha ingenuidade acadêmica, acredito ter sido positivo o saldo.
Em minhas análises pessoais e conversas que tive na Conferência, afirmei, o que já via empiricamente, que há impregnado e consensuado dentro das Agências de Controle (formais e informais) a reflexão míope de criminalidade e de criminoso, sequer se aprofunda a visão de seletividade e etiquetamento do dito "marginal" na esfera policial. Digo isso, pois percebo que existe, além do código que estabelece o criminoso como aquele que pratica os pequenos crimes de violência de rua (definido aqui como pequenos crimes contra o patrimônio, contra os corpos e contra a saúde - preponderantemente as drogas ilícitas, praticados nas vias públicas por agentes de baixa ou nenhuma renda), uma clara determinação dos limites operacionais da própria polícia, ou seja, sua operacionalidade se presta a isso (violência cotidiana dos conflitos interpessoais e de combate aos pobres), jamais a atacar conflitos provenientes das classes mais altas e endinheiradas da população, vez que não poderiam o fazer com um mandado judicial precário ou de forma violenta, como o fazem quando o criminoso é o pobre.
Percebi naquele público reduzido, que o mal da sociedade "de bem" é a pobreza, eles nas condições de representantes do braço armado do Estado Democrático de Direito têm esta função, não tendo voz (nem voto) de repensar um outro caminho que não o de combate à pobreza e os crimes que os pobres cometem.
Mesmo a proposta de Polícia Comunitária, dentro desta lógica estrutural e reformista, tende ao fracasso, pois tem como foco o controle dos conflitos entre pobres. O diálogo com as Comunidades mais abastadas não contém o viés de contenção dos conflitos, mas sim de redução do ataque a seus patrimônios, p. ex., mais polícias para proteger os bens privados nas vias urbanas, mais policiamento com o intuito de proteger o desenvolvimento econômico e comercial de determinada região, monitoramento eletrônico e (o mais absurdo de todos que já ouvi foi o que a Associação de Moradores de Jurerê Internacional [Floripa/SC] propôs numa reunião de Conselho de Segurança) a construção pelo poder público de uma cancela, colocando o efetivo da Guarda Municipal em regime de plantão, para identificar e autorizar a entrada de pessoas no bairro.
Dadas estas reflexões... que voam longe... encontrei na Comunidade Segura (comunidadesegura.org) este artigo do Dr. Orlando Zaccone (Mestre em Direito e Delegado no Rio de Janeiro, autor do livro "Acionistas do nada", da Editora Revan [excelente livro!]) , mesmo datado de quase 1 ano atrás, a forma direta e objetiva do que é o crime e a criminalidade no contexto da luta contra as drogas é uma aula aos iniciantes de um debate que deve ser reforçado e encampado por tod@s, na luta da descriminalização das drogas do Brasil (bandeira essa que sou plenamente a favor!).
Devemos dissiminar outros olhares e outras práticas no campo da Segurança Pública (isso é uma das pretensões que tenho).
Deixo-os com a entrevista e, se quiserem, estou aqui para o debate!
ABRAÇOS e bom domingo,
Dani Felix
***
'Pensar em tráfico não é pensar em favelas'
por Marina Lemle, em 01/09/2008, Comunidade Segura.Org
Num braço, Hare, noutro Krishna. As tatuagens monásticas e as opiniões libertárias – ele é a favor da legalização das drogas e acha que a maioria dos presos do Rio de Janeiro deveria estar solta – não combinam com os estereótipos que se têm de um delegado. Mas ele o é: doutor Orlando Zaccone, titular da 52ª DP, Nova Iguaçu.
Com conhecimento de causa tanto pela experiência prática quanto pelo estudo acadêmico, Zaccone demole outro estereótipo: o do traficante de drogas como um ser violento, poderoso e rico, um inimigo da sociedade protegido por uma rede criminosa. “Os traficantes presos são os chamados ‘mulas’ ou ‘aviões’, pessoas muito pobres, desarmadas, às vezes mulheres e idosas, que transportam a droga para ganhar 50 reais”, afirma.
Estes “traficantes” são para Zaccone os “acionistas do nada”, expressão que intitula seu livro recém-lançado pela Revan, fruto de pesquisa de mestrado em Ciências Penais na Universidade Cândido Mendes. O estudo mostra a distribuição desigual das prisões em flagrante pela cidade e relaciona o fato à seletividade punitiva do sistema, que criminaliza a pobreza. “Pensar em tráfico é pensar em favelas e favelados, mas essa não é a realidade”, garante.
Nesta entrevista ao Comunidade Segura, o delegado denuncia o encarceramento de pessoas por sua condição miserável, sugere mudanças no Código Penal, questiona a política anti-drogas e fala dos seus projetos de educação e cultura com os 450 presos da carceragem.
O livro Acionistas do Nada - quem são os traficantes de drogas é resultado de uma pesquisa de mestrado. O que pretendeu o estudo?
Fiz um estudo sobre o processo de criminalização, que hoje é o que se estuda pela criminologia crítica, após uma virada no objeto de estudo da criminologia, que antes era o criminoso. Na verdade, nem todo mundo que pratica crime vai preso. Quem então define quem é criminoso é o etiquetamento. Criminoso é aquele que é identificado como tal, ainda que não tenha sequer praticado a conduta prevista pela lei, como o cara que está no lugar errado na hora errada. Estudei o processo de criminalização por drogas na cidade do Rio de Janeiro, isto é, quais são as pessoas que são rotuladas e identificadas pelo sistema como traficantes.
Poderia explicar melhor?
Peguei um mapa da criminalização na cidade e vi que esse bem negativo - a delinqüência - também é distribuído de forma desigual, assim como os bens positivos. A delinqüência é, segundo Michel Foucault, a “ilegalidade dominada”, ou seja: deliquente é aquele que é reconhecido e sofre um processo de criminalização, e não o cara que pratica crime, porque este pode ser o presidente da República, um delegado, um juiz, um fiscal, mas se ainda não foi reconhecido como criminoso, ele não é delinqüente. O estudo da delinqüência mostra a criminalidade que é controlada, porque existe uma outra que está fora do controle do sistema penal, porque não é identificada. Então fui estudar isso a partir dos autos de prisão em flagrante: quem eram os traficantes presos pela polícia do Rio de Janeiro e quais os critérios que o sistema – a polícia, o Judiciário, o Ministério Público - usa para fazer a seletividade das pessoas que vão ser criminalizadas, já que é impossível o sistema processar, julgar e prender todas as pessoas que praticam as condutas previstas no Código Penal. O projeto legislativo é faraônico, não há como cumprir as metas.
O que você descobriu?
Observei que a distribuição dos flagrantes e do espaço da cidade era desigual. Listei num quadro as seis delegacias que mais fizeram registros de tráfico no Rio no ano de 2005, nesta ordem: Bangu, Santa Cruz, Bonsucesso, Jacarepaguá, Imbariê e São Cristóvão, resultando um total de 561 registros. Fiz outro quadro só com os registros da Zona Sul e Barra: Gávea, Botafogo, Copacabana, Leblon, Ipanema e Barra da Tijuca, que somam, juntos, 63 - o mesmo número de São Cristóvão sozinho.
E quem são os presos por tráfico?
Eles são 60% de todos os presos em flagrante. Descobri que mais de 90% dos autuados por tráfico no Rio são presos sem armas. Por que em Bangu temos um número tão alto de flagrantes (186)? Porque são em grande número mulheres que tentam levar droga para dentro do presídio na visita e são autuadas por tráfico. Muitos traficantes presos na cidade são presos por condutas que não envolvem violência, arma ou organização criminosa. É a mulher que leva droga no presídio para o companheiro, é a “mula”, que leva a droga de um ponto a outro da cidade, o “avião”, que vai no morro buscar droga para alguém no asfalto. Essas pessoas têm um estereótipo que a mídia divulga como sendo o traficante. A imagem que a mídia faz do traficante é de uma pessoa violenta, enriquecida através do comércio de substâncias proibidas, com uma rede de proteção de supostas organizações. Se você for analisar o traficante preso, ele não faz parte desse estereótipo. Posso te dizer com toda certeza que estes varejistas das drogas não ficam com um lucro significativo do negócio. O sistema penal acaba punindo a ponta mais fraca do negócio, aqueles que são mais vulneráveis, que não estão armados. O traficante armado não vai preso, ele morre, porque resiste no combate à prisão. Os que estão sendo presos são esses “acionistas do nada”.
E o que determina o tráfico? A quantidade portada?
Depende. Se o cara andar com 20 gramas de maconha, a lei vai dizer que é tráfico se ele usar aquilo para outros fins que não o consumo próprio. Mas quem é que vai dizer? Depende de onde ele se encontra, dos antecedentes dele. Um garoto com 20 gramas de maconha no morro é traficante, na zona sul é usuário. Esse é um dos critérios de seletividade punitiva que eu relaciono no estudo de criminalização.
Quais são esses critérios da seletividade?
Em primeiro lugar, o espaço onde o crime é cometido; os crimes que ocorrem no espaço público são muito mais identificáveis do que aqueles que ocorrem no espaço privado: no espaço público não precisa de ordem judicial, investigação. Pegou o moleque com uma quantidade de droga é traficante. E por que na Barra há poucos flagrantes? Porque o tráfico na Barra se dá nos condomínios. Outro fator de seletividade é o estereótipo do traficante, que é o do favelado. Pensar em tráfico no Rio de Janeiro é pensar nas favelas, o que não corresponde a uma realidade. Sabemos que outras drogas, como as sintéticas, não são – ou não eram – vendidas em favelas, mas nunca houve uma ação do poder público contra essas drogas como as operações feitas nas favelas. Tanto é que quando se prende um garoto de classe média, isso fica semanas no jornal como uma notícia fora do comum. Esses são os dois principais critérios da seletividade punitiva – o espaço e o estereótipo.
E a mídia ajuda a consolidar os estereótipos?
Quando o jornal divulga mulheres no tráfico de fuzil na mão, como recentemente fizeram para divulgar o livro do MV Bill e Celso Athayde, isso é um desserviço para a população favelada. O livro diz que as mulheres estão em todos os setores do tráfico. Mas no Rio de Janeiro todo, só há seis mulheres que portam fuzil e trocam tiro com a polícia. Mas pegam essa exceção – seis no estado do Rio todo – e colocam isso como o estereótipo da presa do tráfico. E a foto dessa mulher é que vai para a capa do jornal, e o leitor fica com a idéia de que a traficante é uma pessoa violenta, que porta fuzil, usa shortinho e piercing no umbigo. Isso é uma mentira. A grande maioria das mulheres encarceradas no tráfico é extremamente pobre, não tira onda com arma na mão, e simplesmente transporta a droga por necessidade, para ganhar 50 ou 100 reais, ou por amor, levando a droga para o companheiro na prisão.
O que você acha da política de segurança do Rio?
A idéia da segurança pública militarizada vem da ditadura militar, que vê o criminoso como um inimigo do estado. Mas no estado democrático, o criminoso é um cidadão que violou uma norma e tem que cumprir uma pena em razão do descumprimento da norma. Ele não tem que ser eliminado por conta disso, ele simplesmente tem que responder pela violação da norma. Infelizmente, nós assimilamos essa ideologia da segurança nacional, que ensejou toda a repressão à criminalidade política e transferimos isso do criminoso político para o criminoso comum. As mesmas torturas, os mesmos paradigmas, que eram usados pela ditadura militar para combater o terrorismo, a subversão, os comunistas, são utilizados hoje para combater o crime comum. A idéia de guerra contra a criminalidade é incompatível com o Estado democrático de direito. Essa divulgação de que existe uma guerra urbana, que traficantes querem tomar o poder, isso tudo é uma mentira.
Mas essa imagem vêm do próprio governo, em ações e propaganda...
E porque usa conceitos do paradigma de segurança nacional. Tem que mudar o conceito. A Colômbia conseguiu muito sucesso em novas políticas para a redução da criminalidade porque mudaram o conceito, o paradigma. Segurança não é só o combate à criminalidade, mas também questões de urbanismo e outras áreas visando reduzir a vulnerabilidade.
Você é a favor da legalização das drogas?
O que coloco no meu livro é que existe uma criminalização dos pobres através da criminalização das drogas ilícitas. Hoje nós sabemos que a proibição dessas drogas não visa proteger a saúde de ninguém. A guerra declarada às drogas nos anos 80 pelos Estados Unidos exerce uma pressão política. Por trás do pano de fundo construído de se proteger a saúde pública e do discurso moral de uma sociedade, que faz um conceito diabólico dessas substâncias “do mal”, há fundamentos políticos na proibição. Existe todo um jogo de poder com interesses geopolíticos por trás da criminalização das drogas. Sou a favor da legalização das drogas, mas não vamos conseguir isso sem que seja definido também em plano internacional.
O que fazer enquanto isso?
A primeira coisa é uma política de ataque ao discurso moral de demonizar as drogas. Quando você demoniza a droga, deixa de vê-la como o que ela merece: uma droga, como as drogas vendidas sob controle em farmácias. A gente consome tecido de cânhamo importado, mas não pode plantar maconha para fazer tecido. Isso é um absurdo. Temos que ir para a política do possível. É possível para o Brasil, por exemplo, hoje, autorizar, na região de Pernambuco de Cabrobró, o plantio de maconha para fins terapêuticos, medicinais.
Para fumar não?
Aí é outra política. O usuário não deve ser criminalizado, e hoje isso já acontece, ele não é mais punido com a pena privativa de liberdade. Hoje temos uma política de descriminalização para o usuário e aumento da pena para o traficante, o que soa absurdo, mas explica-se pelos estereótipos do usuário e do traficante, zona sul e favela. O usuário está numa boa, não está sofrendo as sanções das duras penas da lei. Quem sofre são os traficantes, que não são os seres violentos do discurso que criminaliza a pobreza. Os violentos nem são presos, são mortos.
Você defende mudanças na lei penal das drogas?
Defendo penas menos severas para essas pessoas, que estão sendo punidas como criminosos perigosíssimos e por causa da sua vulnerabilidade, que as fez ser identificadas como criminosas. A lei poderia, por exemplo, dar punições diferentes para o dono e o empregado do negócio, como crimes diferenciados. Outras coisas podem ser feitas para se reduzir a ação do poder punitivo sobre essas pessoas vulneráveis.
O fato de ser hare krishna ajuda você a lidar com essas 450 almas que estão presas?
Pode ajudar, mas não é decisivo. As ações que estou tentando implementar não são da área espiritual ou da caridade. Lá estou como delegado, não como hare krishna. O que estou tentando fazer lá é garantir aos presos os direitos que a própria lei garante a eles. Nosso sistema penitenciário é tão violador dos direitos humanos como o da base americana de Guantânamo. Procuro cuidar dos presos dentro de uma ideologia nova. Na carceragem de Nova Iguaçu tem uma escola da rede municipal de ensino. O criminoso não tem mais que ser visto como inimigo a ser eliminado ou excluído. O criminoso é o cidadão que viola uma regra e tem que ser punido. Mas a pena dele é privativa da liberdade, não de saúde, educação, acesso à justiça.
No que a polícia pode melhorar?
A polícia pode contribuir muito para a mudança dos rumos do nosso país, desde que assuma seu papel de manutenção da ordem dentro das regras pré-estabelecidas. A polícia precisa se pensar uma instituição não do poder público estatal, mas da sociedade, para defender os seus anseios, e não projetos políticos governamentais.
*Fonte:Entrevistas, Política de drogas,Brasil - Copyright 2005-2008, ComunidadeSegura.org. Todos os direitos reservados -Source URL: http://www.comunidadesegura.org/pt-br/node/37775
Com conhecimento de causa tanto pela experiência prática quanto pelo estudo acadêmico, Zaccone demole outro estereótipo: o do traficante de drogas como um ser violento, poderoso e rico, um inimigo da sociedade protegido por uma rede criminosa. “Os traficantes presos são os chamados ‘mulas’ ou ‘aviões’, pessoas muito pobres, desarmadas, às vezes mulheres e idosas, que transportam a droga para ganhar 50 reais”, afirma.
Estes “traficantes” são para Zaccone os “acionistas do nada”, expressão que intitula seu livro recém-lançado pela Revan, fruto de pesquisa de mestrado em Ciências Penais na Universidade Cândido Mendes. O estudo mostra a distribuição desigual das prisões em flagrante pela cidade e relaciona o fato à seletividade punitiva do sistema, que criminaliza a pobreza. “Pensar em tráfico é pensar em favelas e favelados, mas essa não é a realidade”, garante.
Nesta entrevista ao Comunidade Segura, o delegado denuncia o encarceramento de pessoas por sua condição miserável, sugere mudanças no Código Penal, questiona a política anti-drogas e fala dos seus projetos de educação e cultura com os 450 presos da carceragem.
O livro Acionistas do Nada - quem são os traficantes de drogas é resultado de uma pesquisa de mestrado. O que pretendeu o estudo?
Fiz um estudo sobre o processo de criminalização, que hoje é o que se estuda pela criminologia crítica, após uma virada no objeto de estudo da criminologia, que antes era o criminoso. Na verdade, nem todo mundo que pratica crime vai preso. Quem então define quem é criminoso é o etiquetamento. Criminoso é aquele que é identificado como tal, ainda que não tenha sequer praticado a conduta prevista pela lei, como o cara que está no lugar errado na hora errada. Estudei o processo de criminalização por drogas na cidade do Rio de Janeiro, isto é, quais são as pessoas que são rotuladas e identificadas pelo sistema como traficantes.
Poderia explicar melhor?
Peguei um mapa da criminalização na cidade e vi que esse bem negativo - a delinqüência - também é distribuído de forma desigual, assim como os bens positivos. A delinqüência é, segundo Michel Foucault, a “ilegalidade dominada”, ou seja: deliquente é aquele que é reconhecido e sofre um processo de criminalização, e não o cara que pratica crime, porque este pode ser o presidente da República, um delegado, um juiz, um fiscal, mas se ainda não foi reconhecido como criminoso, ele não é delinqüente. O estudo da delinqüência mostra a criminalidade que é controlada, porque existe uma outra que está fora do controle do sistema penal, porque não é identificada. Então fui estudar isso a partir dos autos de prisão em flagrante: quem eram os traficantes presos pela polícia do Rio de Janeiro e quais os critérios que o sistema – a polícia, o Judiciário, o Ministério Público - usa para fazer a seletividade das pessoas que vão ser criminalizadas, já que é impossível o sistema processar, julgar e prender todas as pessoas que praticam as condutas previstas no Código Penal. O projeto legislativo é faraônico, não há como cumprir as metas.
O que você descobriu?
Observei que a distribuição dos flagrantes e do espaço da cidade era desigual. Listei num quadro as seis delegacias que mais fizeram registros de tráfico no Rio no ano de 2005, nesta ordem: Bangu, Santa Cruz, Bonsucesso, Jacarepaguá, Imbariê e São Cristóvão, resultando um total de 561 registros. Fiz outro quadro só com os registros da Zona Sul e Barra: Gávea, Botafogo, Copacabana, Leblon, Ipanema e Barra da Tijuca, que somam, juntos, 63 - o mesmo número de São Cristóvão sozinho.
E quem são os presos por tráfico?
Eles são 60% de todos os presos em flagrante. Descobri que mais de 90% dos autuados por tráfico no Rio são presos sem armas. Por que em Bangu temos um número tão alto de flagrantes (186)? Porque são em grande número mulheres que tentam levar droga para dentro do presídio na visita e são autuadas por tráfico. Muitos traficantes presos na cidade são presos por condutas que não envolvem violência, arma ou organização criminosa. É a mulher que leva droga no presídio para o companheiro, é a “mula”, que leva a droga de um ponto a outro da cidade, o “avião”, que vai no morro buscar droga para alguém no asfalto. Essas pessoas têm um estereótipo que a mídia divulga como sendo o traficante. A imagem que a mídia faz do traficante é de uma pessoa violenta, enriquecida através do comércio de substâncias proibidas, com uma rede de proteção de supostas organizações. Se você for analisar o traficante preso, ele não faz parte desse estereótipo. Posso te dizer com toda certeza que estes varejistas das drogas não ficam com um lucro significativo do negócio. O sistema penal acaba punindo a ponta mais fraca do negócio, aqueles que são mais vulneráveis, que não estão armados. O traficante armado não vai preso, ele morre, porque resiste no combate à prisão. Os que estão sendo presos são esses “acionistas do nada”.
E o que determina o tráfico? A quantidade portada?
Depende. Se o cara andar com 20 gramas de maconha, a lei vai dizer que é tráfico se ele usar aquilo para outros fins que não o consumo próprio. Mas quem é que vai dizer? Depende de onde ele se encontra, dos antecedentes dele. Um garoto com 20 gramas de maconha no morro é traficante, na zona sul é usuário. Esse é um dos critérios de seletividade punitiva que eu relaciono no estudo de criminalização.
Quais são esses critérios da seletividade?
Em primeiro lugar, o espaço onde o crime é cometido; os crimes que ocorrem no espaço público são muito mais identificáveis do que aqueles que ocorrem no espaço privado: no espaço público não precisa de ordem judicial, investigação. Pegou o moleque com uma quantidade de droga é traficante. E por que na Barra há poucos flagrantes? Porque o tráfico na Barra se dá nos condomínios. Outro fator de seletividade é o estereótipo do traficante, que é o do favelado. Pensar em tráfico no Rio de Janeiro é pensar nas favelas, o que não corresponde a uma realidade. Sabemos que outras drogas, como as sintéticas, não são – ou não eram – vendidas em favelas, mas nunca houve uma ação do poder público contra essas drogas como as operações feitas nas favelas. Tanto é que quando se prende um garoto de classe média, isso fica semanas no jornal como uma notícia fora do comum. Esses são os dois principais critérios da seletividade punitiva – o espaço e o estereótipo.
E a mídia ajuda a consolidar os estereótipos?
Quando o jornal divulga mulheres no tráfico de fuzil na mão, como recentemente fizeram para divulgar o livro do MV Bill e Celso Athayde, isso é um desserviço para a população favelada. O livro diz que as mulheres estão em todos os setores do tráfico. Mas no Rio de Janeiro todo, só há seis mulheres que portam fuzil e trocam tiro com a polícia. Mas pegam essa exceção – seis no estado do Rio todo – e colocam isso como o estereótipo da presa do tráfico. E a foto dessa mulher é que vai para a capa do jornal, e o leitor fica com a idéia de que a traficante é uma pessoa violenta, que porta fuzil, usa shortinho e piercing no umbigo. Isso é uma mentira. A grande maioria das mulheres encarceradas no tráfico é extremamente pobre, não tira onda com arma na mão, e simplesmente transporta a droga por necessidade, para ganhar 50 ou 100 reais, ou por amor, levando a droga para o companheiro na prisão.
O que você acha da política de segurança do Rio?
A idéia da segurança pública militarizada vem da ditadura militar, que vê o criminoso como um inimigo do estado. Mas no estado democrático, o criminoso é um cidadão que violou uma norma e tem que cumprir uma pena em razão do descumprimento da norma. Ele não tem que ser eliminado por conta disso, ele simplesmente tem que responder pela violação da norma. Infelizmente, nós assimilamos essa ideologia da segurança nacional, que ensejou toda a repressão à criminalidade política e transferimos isso do criminoso político para o criminoso comum. As mesmas torturas, os mesmos paradigmas, que eram usados pela ditadura militar para combater o terrorismo, a subversão, os comunistas, são utilizados hoje para combater o crime comum. A idéia de guerra contra a criminalidade é incompatível com o Estado democrático de direito. Essa divulgação de que existe uma guerra urbana, que traficantes querem tomar o poder, isso tudo é uma mentira.
Mas essa imagem vêm do próprio governo, em ações e propaganda...
E porque usa conceitos do paradigma de segurança nacional. Tem que mudar o conceito. A Colômbia conseguiu muito sucesso em novas políticas para a redução da criminalidade porque mudaram o conceito, o paradigma. Segurança não é só o combate à criminalidade, mas também questões de urbanismo e outras áreas visando reduzir a vulnerabilidade.
Você é a favor da legalização das drogas?
O que coloco no meu livro é que existe uma criminalização dos pobres através da criminalização das drogas ilícitas. Hoje nós sabemos que a proibição dessas drogas não visa proteger a saúde de ninguém. A guerra declarada às drogas nos anos 80 pelos Estados Unidos exerce uma pressão política. Por trás do pano de fundo construído de se proteger a saúde pública e do discurso moral de uma sociedade, que faz um conceito diabólico dessas substâncias “do mal”, há fundamentos políticos na proibição. Existe todo um jogo de poder com interesses geopolíticos por trás da criminalização das drogas. Sou a favor da legalização das drogas, mas não vamos conseguir isso sem que seja definido também em plano internacional.
O que fazer enquanto isso?
A primeira coisa é uma política de ataque ao discurso moral de demonizar as drogas. Quando você demoniza a droga, deixa de vê-la como o que ela merece: uma droga, como as drogas vendidas sob controle em farmácias. A gente consome tecido de cânhamo importado, mas não pode plantar maconha para fazer tecido. Isso é um absurdo. Temos que ir para a política do possível. É possível para o Brasil, por exemplo, hoje, autorizar, na região de Pernambuco de Cabrobró, o plantio de maconha para fins terapêuticos, medicinais.
Para fumar não?
Aí é outra política. O usuário não deve ser criminalizado, e hoje isso já acontece, ele não é mais punido com a pena privativa de liberdade. Hoje temos uma política de descriminalização para o usuário e aumento da pena para o traficante, o que soa absurdo, mas explica-se pelos estereótipos do usuário e do traficante, zona sul e favela. O usuário está numa boa, não está sofrendo as sanções das duras penas da lei. Quem sofre são os traficantes, que não são os seres violentos do discurso que criminaliza a pobreza. Os violentos nem são presos, são mortos.
Você defende mudanças na lei penal das drogas?
Defendo penas menos severas para essas pessoas, que estão sendo punidas como criminosos perigosíssimos e por causa da sua vulnerabilidade, que as fez ser identificadas como criminosas. A lei poderia, por exemplo, dar punições diferentes para o dono e o empregado do negócio, como crimes diferenciados. Outras coisas podem ser feitas para se reduzir a ação do poder punitivo sobre essas pessoas vulneráveis.
O fato de ser hare krishna ajuda você a lidar com essas 450 almas que estão presas?
Pode ajudar, mas não é decisivo. As ações que estou tentando implementar não são da área espiritual ou da caridade. Lá estou como delegado, não como hare krishna. O que estou tentando fazer lá é garantir aos presos os direitos que a própria lei garante a eles. Nosso sistema penitenciário é tão violador dos direitos humanos como o da base americana de Guantânamo. Procuro cuidar dos presos dentro de uma ideologia nova. Na carceragem de Nova Iguaçu tem uma escola da rede municipal de ensino. O criminoso não tem mais que ser visto como inimigo a ser eliminado ou excluído. O criminoso é o cidadão que viola uma regra e tem que ser punido. Mas a pena dele é privativa da liberdade, não de saúde, educação, acesso à justiça.
No que a polícia pode melhorar?
A polícia pode contribuir muito para a mudança dos rumos do nosso país, desde que assuma seu papel de manutenção da ordem dentro das regras pré-estabelecidas. A polícia precisa se pensar uma instituição não do poder público estatal, mas da sociedade, para defender os seus anseios, e não projetos políticos governamentais.
*Fonte:Entrevistas, Política de drogas,Brasil - Copyright 2005-2008, ComunidadeSegura.org. Todos os direitos reservados -Source URL: http://www.comunidadesegura.org/pt-br/node/37775
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