Recordemos a chacina do Pan,
aquelas dezenove execuções no Alemão antes dos Jogos. Recordemos
especialmente as capas das revistas semanais, que saudavam a operação
como alvissareira “novidade” nas técnicas policiais. Na foto da capa, um
inspetor da Polícia Civil conhecido por Trovão, em trajes de
expedicionário norte-americano no Iraque, degustava um charuto
caminhando numa viela sobre o corpo de algumas das vítimas da operação.
Dezenove
execuções não eram em si qualquer novidade. Afinal, a polícia carioca
está matando anualmente uns mil e duzentos suspeitos, e esta cifra
espantosa, este récorde mundial, alcançado gota a gota – dois
traficantes aqui, um assaltante acolá etc – jamais despertou maior
comoção na mídia. Se todos fossem mortos num dia só, teríamos em perdas
humanas mais do que na tragédia das chuvas na região serrana, incluindo
desaparecidos – na serra como nos registros policiais. Diluídas porém
no noticiário cotidiano, essas mortes oferecem a base para a
disseminação de um conformismo perigoso para o Estado de direito. A
“novidade” em uníssono saudada pela mídia não residia, por certo, em
ter aquela operação policial obtido num só dia o produto funesto de
três ou quatro. A “novidade” era a própria legitimação da brutalidade
policial. É isso aí. Vamos mostrar-lhes quem tem mais fuzis. Quem com
ferro fere... Não apenas tolerância, mas também culpa zero. E, por que
não, cumprida a tarefa, por que não saborear um purito pisando o sangue ainda quente dos inimigos?
Nos
jornais de 12 de fevereiro de 2011, estampou-se a prisão do inspetor
Trovão, suspeito “de ter participado da garimpagem no Complexo do
Alemão”, dentro da prática alcunhada “espólio de guerra” (O Globo, p.
21). Pobre Trovão. Ele não só se vestia e se sentia como um soldado em
plena batalha dentro de território inimigo, mas sobretudo confirmava
seus figurinos e sentimentos lendo os jornais. Guerra é guerra.
Essa
pilhagem teria ocorrido no que poderíamos chamar de segunda tomada do
Alemão, com o apoio de equipamentos bélicos e pessoal militar. Enquanto
embaixo um tanque, que poderia estar sendo pilotado por Marcílio Dias
ou por João Cândido, dissuadia toda resistência, lá em cima era Serra
Pelada, mangueiras e bateias a mil.
Recordemos
duas cenas daquela cobertura ufanista, do que foi chamado de “Tropa de
Elite 3”. A primeira se deu quando aquele magote de favelados armados
fugia por uma estrada de terra. De repente, um deles foi alvejado. Não é
recente a criminalização desse fato, a execução de um suspeito que
esteja fugindo, que Sérgio Verani estudou pioneiramente entre nós; quer
perante o direito internacional, quer perante nosso direito interno,
aquilo foi um crime. No século XV, uma ordenação determinava que o
oficial de Justiça “nom o (o suspeito) deva matar por fogir, ainda
que d’outra guisa prender nom possa; e matando-o, averá pena de Justiça,
segundo no caso couber” (Ord. Afo. II, VIII, 10). Temos algo a
aprender com Afonso V, pois ninguém se interessou por aquele homicídio a
sangue frio, visto por mais de cem milhões de pessoas. Ninguém se
interessou. Nenhum jornalista, nenhum membro do Ministério Público,
nenhuma autoridade do Executivo, nenhum parlamentar, silêncio obsequioso
da OAB-RJ. Ao contrário, soube que uma repórter indagou a um
constrangido oficial da PM por que a polícia não tinha resolvido tudo
naqueles instantes de fuga.
A
segunda cena deve ser antecedida por um esclarecimento. Bens
adquiridos com o produto de práticas ilícitas serão perdidos para o
Estado – este é um dos mais conhecidos efeitos da condenação (art. 91,
inc. II, al. b CP). O patrimônio dos infratores – quando e
apenas quando comprovadamente oriundo da atividade criminosa – deve ser
apreendido e preservado, para que sobre sua guarda, posse ou depósito
decida o Juiz. Pois no Alemão, sob as vistas complacentes de
policiais-militares fardados, alguns moradores saqueavam móveis,
utensílios e materiais da casa que pertenceria ao chefe local do
comércio ilícito. Hoje, desvelada a “garimpagem”, o “espólio de
guerra”, compreende-se melhor a utilidade desta cena: num arroubo,
explicável pelos anos de tirania, os vizinhos saquearam a casa do
suspeito. Aquele saque popular, televisionado com simpatia – dos PM’s e
dos âncoras – era um excelente álibi para outros saques, mais bem
direcionados às economias do comércio ilegal. Nenhum programa de tevê
deu maior importância, e era um flagrante delito (de quem saqueava e de
quem deixava saquear) no ar! Compreende-se; afinal, era o Dia da
Vitória.
A
militarização da segurança pública constitui um enorme equívoco no
qual levianamente se insiste entre nós. Recentemente, Raúl Zaffaroni
recordava que todos os genocídios do século XX foram praticados por
forças policiais, e quando forças armadas institucionalizadas neles se
envolveram, estavam exercendo funções policiais (como essas que
recentemente lhes foram atribuídas para as fronteiras). O núcleo desse
equívoco provém da confusão, comum nas ciências sociais – veja-se, por
exemplo, Elias – entre poder militar e poder punitivo. No Estado de
direito, esses dois poderes não podem se aproximar sem riscos
gravíssimos. Mas essa aproximação foi muito dinamizada por um projeto,
gestado no hemisfério norte, de converter as Forças Armadas
latino-americanas em grandes milícias, a perder sua higidez e sua
orientação estratégica no incontestável fracasso da “guerra contra as
drogas”. Onde há guerra não pode haver direito. O militar é adestrado
para o inimigo, o policial para o cidadão. Na estrutura militar, a
obediência integra a legalidade; na policial, a legalidade é condição
prévia da obediência. São formações distintas, dirigidas a realidades
também distintas. O sistema de responsabilização é também diferente: não
há ordens vinculantes para um policial, adstrito a aferir a legalidade
de todas elas (num teatro de guerra, iniciativa similar significaria
derrota certa).
Na
economia, o arrogante discurso neoliberal levou um tranco. Sabemos
agora o que é que a mão invisível do mercado fazia depois do expediente.
Mas a política criminal genocida do neoliberalismo parece sobreviver a
ele. A indústria do controle do crime responde um pouco por essa
permanência. De outro lado, nunca o sistema penal acolitou tão
visivelmente a acumulação capitalista. Ainda há tempo de salvar as
Forças Armadas da cilada que é a militarização da segurança pública. O
jovem tenente, suspeito de furtar um aparelho de ar condicionado, e o
inspetor Trovão acreditaram que estavam participando de batalha em
território inimigo. Foram muito incentivados a acreditar nisso pela
mídia.
É
claro que exércitos regulares impedem o quanto podem a arrecadação de
butim por seus integrantes. O roubo e a extorsão “em zona de operações
militares ou em território militarmente ocupado” pode ser punido, em
tempo de guerra, com a pena de morte (art. 405 CPM). Mas basta olhar, no
cenário internacional, as frentes de conflitos bélicos para constatar a
frequência de abusos que tais situações extremas fomentam.
Recentíssimo
episódio, no qual soldados do Exército oriundos de comunidades pobres
com presença de grupos rivais do chamado Comando Vermelho (CV) – o alvo
preferencial e quase exclusivo da política de UPP’s – declinavam
desafiadoramente sua procedência para moradores do Alemão é
especialmente preocupante. Não pela emergência de um suposto “Comando
Verde”, como desafortunadamente sugeriu um próspero ongueiro de origem
popular, mas sim porque essas rivalidades – fenômeno urbano frequente –
começam, por efeito da atividade de patrulhamento policial, a
introduzir-se na tropa. Como os recrutas oriundos de favelas com
presença do CV reagirão às insolências ou chistes que seus camaradas,
provindos de favelas com presença por exemplo do ADA ou de milícias,
porventura dirijam a moradores ou mesmo a infratores? Este conflito, que
jamais havia transposto de forma significativa o portão dos quartéis
das Forças Armadas, pode sorrateiramente introduzir-se agora neles.
Certas
funções policiais são brutalizantes e produzem efeitos deteriorantes
sobre aqueles que as realizam. Trata-se do fenômeno denominado
“policização”, que pode acontecer também com outros operadores do
sistema penal, carcereiros, advogados, promotores de Justiça e
magistrados. Quem não conhece a policização passará o resto da vida
reclamando do pouco rigor na admissão e adestramento dos policiais,
quando o problema não está na seleção e sim na prática. Quem está
disposto a correr o risco de policização de algumas unidades de nossas
Forças Armadas?
Guerra
é uma coisa muito séria, como o é a soberania e a integridade do
território nacional. Precisamos de Forças Armadas bem adestradas para
aquelas tarefas constitucionais, em que elas são únicas e
insubstituíveis. Já passou da hora de brincar de guerra nas ruas da
cidade.
Fonte: Professor Clécio Lemos: Nilo Batista - novo artigo
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