segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

[Artigo] QUASE DE VERDADE: DIREITOS HUMANOS E ECA, 18 ANOS DEPOIS.

ALEXANDRE MORAIS DA ROSA*
ANA CHRISTINA BRITO LOPES**




Dois mil e oito foi fadado a grandes comemorações voltadas para os direitos humanitários: primeiro os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, depois os 20 anos da Constituição da República que, de tão comprometida com os direitos fundamentais,  ficou conhecida como Constituição Cidadã. Mas o grande destaque comemorativo para os “heróis da resistência”, sem sombra de dúvidas, é o mais que emblemático “aniversário dos 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente”.
É possível dizer que, nos três documentos comemorados, é tudo “quase de verdade”... Mas aqui cabenos apenas refletir sobre os dezoito anos do Estatuto e daí a propriedade do uso do título de história infantojuvenil de Clarice sobre o cachorro Ulisses, que late uma “história que até parece de mentira e até parece de verdade”. 
Foi a inspiração para falar do que no mundo real acontece com o aniversário do Estatuto que, ao ser lido e colocado em confronto com a realidade, também parece ora de mentira ora de verdade, talvez situado no meio termo de realidades singulares neste imenso país, muito decorrente de decisões individuais de aplicação efetiva do ECA.
Após grande luta pela redemocratização do País, eleita a Assembléia Nacional Constituinte, foi conquistado o artigo 227 da CR, fruto de grande mobilização social de segmentos diversos da sociedade envolvida e preocupada em transformar as vidas de crianças e adolescentes. 
Talvez, nenhum dos princípios seja mais “quase de verdade”.
O objetivo do Poder Legislativo era de que fosse possível reverter a dívida histórica com um atendimento marcado pela caridade e assistencialismo em detrimento da promoção de direitos humanos para a infância e juventude, que fazia com que o público infantojuvenil fosse alvo da atenção apenas no viés abandono-delinquência, objeto de ações repressivas e controladoras em sua maioria.
A urgente transformação de crianças e adolescentes em sujeitos (e não mais objetos) de direito, tinha que ter uma força tal que impedisse o esquecimento pelo mundo adulto das necessidades básicas e fundamentais de pessoas em desenvolvimento, e foi escolhida a expressão que pudesse destacar a importância das providências a serem urgentemente praticadas:  “prioridade absoluta” para as ações pertinentes à garantia e defesa dos direitos fundamentais elencados constitucionalmente: dois anos após, ratifica-se o artigo constitucional na Lei 8069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente. 
Alessandro Baratta (1998) anteviu a luta que seria travada: a reforma legal teria força suficiente para mudar a cultura? Seria possível trocar a lógica perversa da prática das políticas de repressão e emergenciais pelas políticas públicas básicas? O que temos hoje?
Hoje, com toda segurança, podemos afirmar que ele teve discernimento e clarividência suficientes para prever o grande desafio de concretizar a transmutação de crianças e adolescentes de objetos em sujeitos. Transformar as políticas públicas de emergenciais e repressivas em básicas, com ênfase no desenvolvimento de programas voltados para as necessidades comuns ao público-alvo, porque sabia que as prénoções que antecipam o sentido eram (e continuam, ainda) permeadas por um totalitarismo antidemocrático decorrente da “ignorância funcional” dos atores jurídicos, especialmente magistrados e promotores de justiça, os quais não conseguem compreender o giro copernicano avivado pelo ECA e a cultura dos Direitos Humanos.
E, de novo, a pergunta: o que temos hoje?
Em todos os segmentos da sociedade, indícios de vivermos uma “ilegalidade oficial”, diante da inobservância das leis: a prioridade absoluta, apesar de princípio constitucional, toma o perfil de “ficção jurídica”, bem como muitos dos direitos humanos de crianças e adolescentes inscritos no ordenamento jurídico especial, transformando esta área do direito em um verdadeiro “conto de fadas” que, parafraseando o famoso conto infantil, poderia se chamar “O ECA no País das Maravilhas”. Esta poderia ser uma das traduções do que se passa, embora o “Quase verdade” de Clarice forneça um significante mais adequado ao que pretendemos ou, ainda, muitos outros títulos de histórias infanto-juvenis, no Direito 
do Sítio do Pica-Pau Amarelo...
Quando refletimos sobre os avanços e desafios do Estatuto, marcado pelo princípio constitucional da prioridade absoluta, não devemos deixar de lado a dimensão do problema ao se fazer um balanço e perceber que avanços existiram, mas que ainda estão aquém, graças à violação ao princípio, que é nacional, e não regional, estadual ou municipal, mas direcionador da Democracia!
Mais uma vez, pensemos: o que temos hoje, em maior ou menor escala, em grande parte dos Municípios e Estados brasileiros?
 -  A não observância do artigo 4º do ECA, alíneas “d” e “e” não sendo priorizadas pelas políticas públicas na área e recursos nos orçamentos;
-  Uma proliferação de ONGs para tentar diminuir o abismo entre o que a política de atendimento prevê como direito a ser efetivado e o que temos como políticas públicas;

-  Adolescentes envolvidos com a prática de atos infracionais ainda em delegacias para adultos, ou em unidades de internação inadequadas e contrárias aos preceitos indicados pelos estudiosos com maior probabilidade de mudar a orientação deles para uma vida consoante às condutas socialmente aceitáveis;
-  Dificuldade em ter acesso à Justiça graças à inexistência de Defensoria Pública em alguns Estados e, assim, à Defesa Técnica obrigatória a que têm direito quando envolvidos, por exemplo, com a prática de um ato infracional;
 -  Conselhos Tutelares que, muitas vezes, independente da região em que se encontram, estão longe do que foi idealizado pelo ECA. Conselheiros despreparados para cumprir com a difícil missão de zelar pelos direitos de crianças e adolescentes simplesmente porque, em alguns casos, nem sequer leram o Estatuto antes de se elegerem e não podem garantir o que desconhecem;
-  Processo de eleição de Conselheiros Tutelares (quando existem) completamente “viciado” pelas mesmas mazelas das eleições para cargos políticos de vereadores, prefeitos, deputados... (ex.: compra de votos);
-  Conselhos de Direitos que ainda não têm clareza sobre quais são suas reais atribuições: controlar ações em todos os níveis e deliberar políticas públicas para a infância e juventude e, ainda, incorrendo no perigo de inverter a lógica do que é prioridade absoluta por ações, tais como:
.  Plenárias e Comissões que se transformam em “reunião de adultos” defendendo seus interesses institucionais ou dos órgãos que representam (se governamentais),  fi cando em último plano a vez e voz dos sujeitos que deram causa a todos estarem ali reunidos quinzenal ou mensalmente;
.  Conferências (Municipais, Estaduais e Nacional) que roubam os olhares e a atenção de todos durante o ano de suas realizações, com disputas acirradas e muita discussão sobre os que poderão participar das mesmas. Os temas escolhidos para serem debatidos, exaustivamente, muitas vezes não revertem nas políticas públicas que deveriam ser deliberadas, com base nas sínteses registradas nos Anais das Conferências pelos Conselhos;
.  Uma sociedade que, muitas vezes, “desorganizada” e desarticulada por interesses “confusos”, diversos 
dos que deveriam nortear as ações dos Conselheiros, desperdiça a conquista da mesma sociedade civil, quando mobilizada e organizada, em participar da deliberação de políticas públicas pelos Conselhos de Direitos e adiando a vitória destes espaços contrahegemônicos vitais para a transformação e efetivação dos direitos humanos de crianças e adolescentes. 
-  Um universo de explorações, muitas vezes iniciada pelas mãos dos familiares (prática histórica e mundial), com viés mercantilista, seja da mão-de-obra, seja do corpo da criança e do adolescente. Crianças e adolescentes transformados em mercadoria de troca ou objeto de lucro (prostituição infantil, meninos vendidos como jogadores de futebol para o exterior, trabalho no lixo, nos canaviais, no tráfico etc.);
 -  Universidades cujos cursos de graduação em Direito não contemplam em suas grades curriculares a obrigatoriedade do ensino do direito da criança e do adolescente, muitas vezes, nem como opção livre e acarretando, como conseqüências: 
a)  Futuros operadores de direito que se transformarão em profissionais de carreira pública, como promotores, defensores públicos e juízes, que irão operar o sistema de garantia de direitos sem sequer conhecerem o texto básico legal (Estatuto), que não é o sufi ciente para trabalhar com as questões do universo infanto-juvenil, que exige conhecimentos interdisciplinares (psicologia, pedagogia, medicina, serviço social...); 
b)  Baixa capacidade de compreensão do ECA por magistrados e promotores, reiterando-se o espetáculo das derrapagens totalitárias, de gente que confunde proteção integral com sua opinião pessoal e tranforma o ECA num instrumento de opressão, especialmente porque assiste a “banda passar falando coisas de amor” e se acovarda diante de um Poder Público que se omite reiteradamente;
c)  Despreparo técnico de advogados para trabalhar na defesa da parcela mais vulnerável da sociedade, afastando a concretização da ampla defesa e dificultando o sucesso na garantia do direito a ser defendido. Temos centenas de advogados nas áreas cível, família, tributária, penal, trabalhista, mas um número ínfi mo de profi ssionais que conhecem e podem advogar no âmbito infanto-juvenil, com todas as especifi cidades nos seus procedimentos e que, quando resolvem atuar, acabam colocando em risco a defesa adequada daqueles por quem estão atuando. 
Este novo direito apresenta uma grande demanda de profissionais que possam operacionalizar e tirar do papel as conquistas da reforma legislativa. A Constituição da República de 1988, 20 anos atrás, ordenou que todos fossem responsáveis pelos direitos fundamentais de crianças e adolescentes: a família, a sociedade e o Estado. Não se pode tolerar, assim, gente que rasteja no campo da infância e juventude, negando-se a cumprir o caráter emancipatório do ECA. 
É hora de nova mobilização social, a exemplo do ocorrido na década de 80. Que 2008 seja um marco: a retomada, não mais para conquistar uma lei preponderantemente comprometida com os direitos humanos, mas pela efetivação desta, como já disse Norberto Bobbio. Alessandro Baratta, do alto do seu olhar visionário, indicou a difícil luta para a concretização do projeto de uma sociedade mais igualitária e mais justa necessária para a aplicação do novo direito da infância e da adolescência:  “(...) o caminho hoje no Brasil e em todo o mundo do capitalismo real é o das lutas pacíficas e tenazes, para se assegurar e impor que a Constituição e a lei sejam aplicadas em todas as áreas. Revolução social significa sinergia de todas as lutas pela defesa e plena realização dos direitos sancionados pelas leis, pelas constituições, 
pelas convenções internacionais, (...) Hoje, utopia concreta é a legalidade constitucional (...)”

Dez anos já haviam sido transcorridos da promulgação da Constituição da República à época em que ele escreveu estas palavras. Agora, vinte anos depois, é possível dizer, com toda segurança: ter a melhor lei nacional para crianças e adolescentes, ter uma Carta Magna que ordena a prioridade absoluta para a garantia e efetivação destes direitos, não é (foi) uma condição suficiente em todos estes anos para transformar a realidade, embora necessária.
No mundo do “faz-de-conta”, até utopia é diferente: o desejoé de alcançar a legalidade material que só foi alcançada até certo ponto. Há que se admitir que, felizmente, nem tudo se perdeu. 
Muitas conquistas existiram com base na lei predominantemente comprometida com a garantia dos direitos humanos de crianças e adolescentes, graças a um pequeno, porém perseverante, número de guerreiros pró-direitos de crianças e adolescentes.
O que nos move a continuar na luta e, por exemplo, escrever este artigo, é o desejo de termos uma sociedade na qual tenhamos leis que, quando lidas para os que ainda as desconhecem, não provoquem comentários jocosos e piadas quanto à sua veracidade. 
Queremos uma sociedade na qual o “faz-de-conta”, o “lúdico”, exista só nas brincadeiras e na literatura infantil, como a de Clarice, mas que, em especial, no que diz respeito ao consagrado e festejado “princípio da prioridade absoluta” – no que concerne à preferência na formulação e na execução das políticas sociais 
públicas e destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude – seja tudo de “verdade verdadeira”. Se para a consagrada autora, a verdade só é como tal no mundo de quem gosta de inventar, sejamos mais criativos que os que vêm sendo vitoriosos na arte de criar estratégias para continuar perpetuando o status quo de objetos, característico de crianças e adolescentes no Código de Menores, que insiste em se manter em vigor em vários aspectos, mesmo18 anos depois de ter sido revogado, principalmente na cabeça de gente com uma cultura jurídica mofada! Sem contar os “menoristas enrustidos”...
“Inventemos” mais e mais maneiras de criar mecanismos para superar a criatividade inspirada em uma lógica perversa dos que inventam para perpetuar a cultura de desprezo e exploração dos mais frágeis e vulneráveis. Talvez, com Clarice, possamos entender o caráter e a função de uma “quase verdade” na construção da cidadania infanto-juvenil, porque desde 1988 nem todos viveram felizes para sempre...

Fonte: http://alexandremoraisdarosa.blogspot.com

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*ALEXANDRE MORAIS DA ROSA - Juiz de Direito da Infância e Juventude de Joinville (SC), Doutor em Direito (UFPR) e Professor do Programa de Mestrado/Doutorado da UNIVALI-SC.
**ANA CHRISTINA BRITO LOPES - Secretária da Comissão da Criança e do Adolescente da OAB/PR, Mestre em Ciências Penais,  Professora da PUCPR e Coordenadora do Curso de Especialização Panorama Interdisciplinar do Direito da Criança e do Adolescente da PUCPR.


Notas:
1  O Título “Quase de Verdade” foi inspirado no livro de literatura infanto-juvenil de Clarice Lispector, autora muito admirada pelos autores deste texto que, assim, ao mesmo tempo que usam tomam emprestado o título para desenvolver o tema 
por possibilitar provocar uma refl exão crítica por parte dos leitores, ainda possibilita uma justa homenagem à autora que tanto admiram e de quem são leitores vorazes.
2 Expressão escolhida para tentar defi nir aqueles que se dedicam a lutar pelos direitos humanos, apesar das críticas sempre sofridas que os rotulam, muitas vezes, como meros “defensores de bandidos”.
3 Criminólogo italiano, já falecido, considerado o grande ícone da Criminologia Crítica.

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