quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Espanhóis debatem a regulamentação e a abolição da prostituição no país - 25/09/2008 - UOL Mídia Global

 

NOTA: Vale a reprodução do artigo aqui no blog pela importância da discussão e a retirada dessas milhares de mulheres da invisibilidade a que são submetidas, além da possibilidade de reconhecimento à dignidade. Eu teria infinitos argumentos e discursos a explicitar, todavia, deixarei minhas considerações para um debate futuro! Beijos, Dani Felix.

 

 

El País - Espanha

O debate entre regulamentação e abolição distrai a atenção do problema mais claro e premente: os direitos humanos. Milhares de estrangeiras são violentadas, isoladas e exploradas pelas máfias na Europa

Carmen Morán

O olhar da sociedade em relação às prostitutas se transformou ao longo dos anos. Há séculos atrás, depois da guerra espanhola, via-se com naturalidade o ato de vender serviços sexuais para matar a fome.
Passadas algumas décadas, aplicou-se um prisma moral de pecado e de vício, mas apesar das proibições, as minissaias e os decotes generosos continuaram existindo. Nos anos oitenta, a prostituição e as drogas estavam no mesmo barco. Mas a comercialização do sexo sempre esteve ligada a uma situação econômica paupérrima que agora se denomina, de forma globalizada, de feminização da pobreza.
Até há pouco tempo, as posturas políticas a respeito do assunto se pretendiam simples: proibir ou legalizar a prostituição. Mas um novo fenômeno, a imigração, trouxe novos matizes ao debate. As estatísticas, que o governo considera boas, indicam que 90% das prostitutas são estrangeiras e cerca de 80% são vítimas do tráfico, ou seja, não optaram por trabalhar nas ruas para sustentar suas casas, mas estão nas mãos das máfias, sem nenhuma possibilidade de escolha.
Os que estão de acordo com esta análise, chamam a situação de "escravidão do século 21" e descrevem as torturas, seqüestros, isolamento e violações sistemáticas realizados para domesticar a vontade das mulheres que viajaram enganadas em busca de outros empregos. Esta é a postura do governo, que está terminando um Plano Integral, do qual participaram 11 ministérios, para tratar de atender a essas situações.
Mas algumas organizações e partidos políticos da esquerda praticamente viram essas estatísticas do avesso. Afirmam que cerca de 80% das prostitutas exercem voluntariamente a profissão e que as mulheres que trabalham sem escapatória são minoria. A Hetaira, organização mais representativa desta versão, entende que em ambos os casos há muito a ser feito, e não acredita a situação esteja em bom caminho. Estas organizações são as que se denominam - sempre com matizes - regulacionistas. Pedem que o Estatuto dos Trabalhadores ampare as mulheres que se prostituem voluntariamente "porque essas trabalhadoras escolhem seu ofício, mas não as condições em que o exercem, os horários, o salário que recebem, nem os serviços sexuais que oferecem", explica Cristina Garaizabal, porta-voz da Hetaira. Este coletivo elogiou há alguns dias as declarações de Miguel Ángel Revilla, presidente de Cantabria, que reconheceu ter estado com uma prostituta pela primeira vez.
A associação Apramp, com presença em várias comunidades, diz que informa cerca de 500 mulheres diferentes por dia nas ruas e bordéis.
"Se elas nos pedissem para regularizar sua situação trabalhista, não negaríamos, mas o que estamos vendo é uma escravidão: mulheres maltratadas, violentadas todos os dias, presas em apartamentos onde ninguém fala com elas até que elas decidam se prostituir", explica Rocío Mora. Por isso, a Apramp se enquadra entre as entidades abolicionistas [que defendem a abolição da prostituição], ainda que saibam "que isso pode ser utópico".
A situação é tão complexa, que, farta dos debates sobre abolição e regularização, Rocío Mora pede soluções imediatas para as milhares de mulheres que estão passando por uma situação ruim agora. No caso do tráfico, ainda que não haja um acordo sobre as estatísticas, os dois grupos concordam que se trata de um caso de direitos humanos e deve ser abordado como tal. A primeira medida das máfias que traficam mulheres é confiscar seus documentos para que elas não possam conseguir uma permissão de trabalho nem de residência. Elas prisioneiras das máfias e também das ameaças, que se estendem às famílias em seus países de origem.
A ONU calcula que a prostituição movimenta entre US$ 5 e 7 bilhões de dólares anuais (entre três e cinco bilhões de euros) e afeta quatro milhões de vítimas.
Quando a polícia irrompe em um bordel, as mulheres podem denunciar quem as recrutou à força. Se o fazem, passam a ser tratadas como testemunhas protegidas. Mas será que suas famílias no Brasil, Romênia e Polônia também estarão protegidas? Os golpes, as torturas e as ameaças fazem uma espiral em suas cabeças. Praticamente nenhuma mulher se atreve a ir à polícia, ainda que esta pareça a saída mais fácil.
"Isso é como a violência de gênero, que pedem para denunciar, mas nem sempre as mulheres o fazem. Mas é pior, porque essas mulheres sofreram maus-tratos tremendos. Por isso pedimos ao governo que conceda a essas mulheres pelo menos um mês [de visto] para que possamos trabalhar com elas de um ponto de vista psiquiátrico, se não, elas não denunciarão nunca". E assim será. "Nesse tempo nós mostramos a elas que tudo é um grande negócio, que ninguém as está ajudando, como dizem [seus seqüestradores]", conta Rocío Mora, da Apramp. Mas, infelizmente, ela reconhece que é cada vez mais difícil recuperar as prostitutas porque os problemas psiquiátricos que apresentam hoje não têm nada a ver com os que existiam anos atrás.
A organização Hetaira vai mais além, acredita que o chamado "período de reflexão" de 30 dias não adianta. "Essas mulheres que foram traficadas devem receber toda a atenção que merecem por terem sido vítimas dessa situação, não se deve condicionar sua estadia na Espanha ao fato de denunciarem ou darem detalhes sobre as máfias".
Os dois grupos clamam por direitos. Soluções imediatas, independentemente de o governo decidir fazer um Plano Integral ou inclinar-se a penalizar os clientes. Pedem saídas para as mulheres que estão sofrendo agora.
Em relação às mulheres que trabalham em liberdade, a associação Apramp nem mesmo crê que elas existam. "Se perguntar a qualquer mulher que está na rua, ela dirá que se prostitui voluntariamente, porque às vezes são necessários meses para que elas reconheçam que são vítimas de tráfico. Se são tão livres, por que é que desaparecem do clube em que trabalham quando nos aproximamos para falar com elas por mais de dez minutos? Por que vão acompanhadas ao cabeleireiro? Por que não fecham a porta do banheiro, acostumadas a uma vigilância permanente?
Por que são cronometradas quando estão com os homens em seus quartos de acordo com o serviço que fazem? Por que os avisos que existem nas paredes desses apartamentos não trazem recomendações sanitárias, mas indicam todo o contrário?", reforça Rocío Mora.
"Como vamos pedir a regularização da situação trabalhista dessas mulheres? Seria o mesmo que pedir amparo legal para uma situação mafiosa", acrescenta Mora. A Apramp tem dois apartamentos em Madri com nove quartos e muita falta de espaço para alojar as mulheres que se atrevem a deixar a prostituição. Algumas delas trabalham como espiãs para conseguir que outras também abandonem a prisão em que se encontram. A organização oferece cursos para as mulheres e colaboram com outras instituições para empregá-las, em geral no serviço doméstico ou no cuidado dos idosos. Mas o trabalho para documentá-las é árduo e esse é o primeiro passo para que possam pedir ajuda ao governo. "Elas não são imigrantes ilegais que devem ser repatriadas, são vítimas".
Em toda a Europa há quatro modelos de legislar quanto à prostituição.
Os mais proibicionistas, adotados por 60% dos países, penalizam os compradores e vendedores de sexo, com uma exceção, a Suécia, que só multa os clientes. Outros têm a situação regularizada, com certos direitos trabalhistas e obrigações sanitárias, mas isso deixa de lado as mulheres sem documentação, que, segundo as estatísticas, são a maioria. Em outro grupo, estão os denominados abolicionistas, como a Espanha, ainda que na prática isso se traduza em políticas de não-intervenção. A situação na Espanha não está prevista em lei. E há também o que se chama de novo abolicionismo, que seria o caso italiano, similar ao enfoque espanhol. Mas isso mudou recentemente para um proibicionismo total, que impede a prostituição nas ruas.
Os abolicionistas na Espanha têm uma certeza firme: de que as prostitutas são vítimas de máfias e é preciso acabar com isso e permitir que essas mulheres tenham outra vida. Mas os regulacionistas afirmam que campanhas como a da Prefeitura de Sevilha, que ataca os clientes da prostituição - "Você vale tão pouco que precisa pagar por sexo?", diz o anúncio publicitário - não fazem senão estigmatizar mais ainda as prostitutas, como "se fossem elas que não valessem nada", diz Garaizabal. "Se não houver anúncios na imprensa, muitas perderão seus trabalhos". Os clientes às vezes são fundamentais para detectar quando há tráfico, diz a Hetaira.
A associação não foi convidada para a reunião de terça-feira no Ministério da Igualdade com a ONG que trabalha com prostitutas. "Eles não querem ouvir que nos países onde se regulamentou a prostituição as máfias não têm vez".
Tradução: Eloise De Vylder

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