Rio de Janeiro, 1º de outubro de 2010.
Navi Pillay
Alta Comissária da ONU para Direitos Humanos
United Nations Central Office
CH-1211, Genebra
Switzerland
Via e-mail: urgent-action@ohchr.org
Fax: 41 22 917 9006
C/c
Sra. Gabriela Carina Knaul de Albuquerque e Silva
Relatora Especial sobre Independência de Magistrados e Advogados
Ref: Possível Violação à Independência e à Imparcialidade do Judiciário por ato de Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Ferreira Mendes, Brasil
Prezada Alta Comissária e Relatora Especial,
Justiça Global, Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, Plataforma Dhesca Brasil, Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), Sociedade Paraense de Direitos Humanos, Terra de Direitos, Coletivo de Entidades Negras, IBASE, e os advogados infrasignatários da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP), vêm informar sobre possível violação à independência e à imparcialidade do Poder Judiciário brasileiro, em decorrência de ato do Ministro da Suprema Corte brasileira (Supremo Tribunal Federal – STF), Sr. Gilmar Ferreira Mendes, conforme exposto a seguir:
Contexto: próximas Eleições no Brasil e nova exigência de documento para votar
Em 03 de outubro de 2010, serão realizadas eleições no Brasil para os cargos do Poder Executivo (presidente da República e governadores de estados) e do Poder Legislativo (deputados estaduais, deputados federais e senadores). São candidatos a presidente: Dilma Roussef, Ivan Martins Pinheiro, Jose Levy Fidelix da Cruz, José Maria de Almeida, Jose Maria Eymael, José Serra, Marina da Silva Vaz de Lima, Plínio de Arruda Sampaio e Rui Costa Pimenta.[1] Para os demais cargos do Poder Executivo e Legislativo, são os seguintes números de candidaturas: i) Governador: 172; ii) Senador: 273 iii) Deputado Federal: 6028; iv) Deputado Estadual: 14387.[2]
Em 24 de setembro de 2010, o Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores (PT) ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4467)[3] junto ao STF com pedido de inconstitucionalidade de dispositivo de lei que estabelece a necessidade de apresentação de dois documentos pessoais no ato da votação: documento pessoal com foto e mais título de eleitor.
Trata-se de uma alteração recente na lei eleitoral. Até o último processo eleitoral, ocorrido no ano de 2008, o eleitor era habilitado a votar mediante a apresentação de apenas um documento com foto e com validade em todo território nacional, sendo facultativa a apresentação de título de eleitor.
Na referida ação, o Partido dos Trabalhadores solicitou:
“(...) seja concedida a medida cautelar pleiteada, em ordem a que se confira a interpretação conforme ao art. 91-A, da Lei nº 9.504/97, na redação dada pela Lei nº 12.034/09, e normativos dele decorrentes (Res. TSE nº 23.218), face à patente inconstitucionalidade da exigência de porte obrigatório do título eleitoral no momento da votação, diante da violação dos arts. 1º, II, e § único, art. 5º, LIV, art. 14, caput e §9º, art. 15 e art. 37, caput, da Carta Magna.”[4]
O julgamento da ação era urgente e relevante, tendo em vista que a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal afetaria diretamente o processo eleitoral marcado para o dia 03 de outubro de 2010. Caso a ADI fosse negada e fosse confirmada a exigência de dois documentos no ato de votação, a expectativa de especialistas e meios de comunicação era que um número elevado de eleitores com pouco acesso a meios de informação – em sua maioria pobres, com menor escolaridade e/ou residentes em zonas rurais – não apresentariam os documentos no próximo domingo e seriam impedidos de votar.
Segundo pesquisa do instituto Datafolha, que ouviu 11660 pessoas em 414 municípios entre os dias 8 e 9 de setembro, e que foi divulgada no dia 15, a pouco mais de duas semanas da eleição, cerca de 6% dos eleitores ainda desconheciam a obrigação de apresentar dois documentos no ato de votação, percentual que chegava a 9% entre os eleitores de menor escolaridade. Além disso, cerca de 5% não tinham título de eleitor ou não sabiam onde estava o documento[5] (íntegra da divulgação da pesquisa em anexo).
Por essa razão, a ação foi colocada em julgamento em regime de urgência no dia 29 de setembro de 2010, isto é, a apenas quatro dias da eleição, com relatoria da Ministra Ellen Gracie, que votou pela concessão de liminar pela não obrigatoriedade da apresentação de título de eleitor para voto. Acompanharam a relatora, os ministros José Antonio Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Carlos Ayres Britto e Marco Aurélio Mello.[6] Ou seja: dos dez ministros que atualmente compõem o STF, sete já haviam votado favoravelmente à dispensa do título de eleitor.
Em sua vez de votar, o ministro Gilmar Mendes pediu vistas do processo e a consequente suspensão do julgamento da ação.
De possível ingerência de um dos candidatos à Presidência da República sobre voto de ministro do STF
No dia de ontem, 30 de setembro de 2010, a Folha de S. Paulo, um dos maiores jornais de circulação do país, publicou notícia afirmando que o candidato à presidência da República, José Serra, do Partido Socialista Democrático Brasileiro (PSDB), teria telefonado para o ministro Gilmar Mendes – a quem cumprimentou como “meu presidente”[7] – pouco antes do início da sessão do plenário do STF, para pedir suspensão do julgamento da referida ação, conforme transcrição de trechos da matéria a seguir (íntegra da reportagem em anexo).
“Após receber uma ligação do candidato do PSDB à Presidência da República, José Serra, o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes interrompeu o julgamento de um recurso do PT contra a obrigatoriedade de apresentação dos dois documentos na hora de votar.
Serra pediu que um assessor telefonasse para Mendes pouco antes das 14h, depois de participar de um encontro com representantes de servidores públicos em São Paulo. A solicitação foi testemunhada pela Folha.
No fim da tarde, Mendes pediu vista (mais prazo para análise), adiando o julgamento. Sete ministros já haviam votado pela exigência de apresentação de apenas um documento com foto, descartando a necessidade do título de eleitor.” (grifo nosso)
Segundo a mesma reportagem do jornal Folha de S. Paulo, a obrigatoriedade da apresentação de dois documentos é apontada por integrantes do próprio PSDB como um fator a favor do candidato José Serra e contra sua adversária, Dilma Roussef (PT), uma vez que esta tem o dobro da intenção de votos de Serra entre o eleitorado com menos escolaridade[8], que seria mais vulnerável à falta de informação sobre a nova norma.
A notícia veiculada indica grave ingerência de um candidato à presidente da República em posicionamento de membro da mais alta corte judicial do país, em ação diretamente relacionada com o pleito eleitoral de 03 de outubro. Pelo que afirma o jornal Folha de S. Paulo, a ligação telefônica do candidato José Serra influenciou o ministro Gilmar Mendes em sua decisão de pedir vistas do processo. Daí, a violação à independência de juízes.
Na tarde do dia 30 de setembro, após grande repercussão da matéria citada, os ministros do STF retomaram a votação. Por oito votos a dois, a ADI foi aceita em caráter liminar e a exigência da apresentação de título de eleitor e outro documento oficial para que o eleitor possa votar nas próximas eleições foi derrubada, Os ministros Gilmar Mendes e Cezar Peluso votaram favoravelmente à cobrança de dois documentos de identificação.
Sobre o ministro Gilmar Mendes e sua ligação com o partido de José Serra
Em janeiro de 2000, Gilmar Ferreira Mendes foi nomeado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, (PSDB, mesmo partido do candidato José Serra) como advogado-geral da União, cargo que ocupou até 2002. Antes disso, atuou como subchefe para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República, de 1996 a 2000.
Em 20 de junho de 2002, também por indicação de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), Gilmar Mendes foi nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Em 2008, assumiu a presidência da Suprema Corte brasileira, até o ano de 2010, quando foi substituído por Cezar Peluso.
Pedidos
Diante dos fatos de extrema gravidade acima narrados, que, reafirmamos, indicam violação de autonomia e independência praticada por integrante da mais alta corte do país em ação relativa a processo eleitoral para altos cargos do Poder Executivo e Legislativo, que ocorrerá em 3 de outubro de 2010, as organizações e pessoas infra-signatárias requerem que a Alta Comissária de Direitos Humanos da ONU e a Representante Especial da ONU sobre Independências de Juízes e Advogados solicitem ao Estado brasileiro:
a) que apresente informações sobre os fatos acima narrados
b) que tome as providências e medidas cabíveis para instauração de procedimento investigatório e para a apuração de possível violação à independência do Judiciário brasileiro, em decorrência de ato do Ministro da Suprema Corte brasileira (Supremo Tribunal Federal – STF), Sr. Gilmar Ferreira Mendes
Agradecemos toda a atenção dispensada à presente comunicação e nos colocamos à disposição para enviar mais informações, caso seja necessário, através dos telefones +55 21 2544 23 20; fax +55 21 2524 84 35; ou pelo email andressa@global.org.br
Atenciosamente,
Andressa Caldas / Sandra Carvalho / Luciana Garcia / Renata Lira / Gustavo Mehl
Justiça Global
Aton Fon Filho
Rede Social de Justiça e Direitos Humanos
Danilo Uler Corregliano
Plataforma Dhesca Brasil
Paulo Carbonari
Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH),
Marco Apolo Santana Leão
Sociedade Paraense de Direitos Humanos
Luciana Pivato / Darci Frigo
Terra de Direitos
Marcio Alexandre M. Gualberto
Coletivo de Entidades Negras
Ivanilda Figueiredo
IBASE
Daniela Felix Teixeira
Advogados Sem Fronteiras - ASF-Brasil
Francine Pinheiro
Mariana Criola - Centro de Assessoria Jurídica Popular
Erika Macedo Moreira
Cerrado Assessoria Jurídica Popular
Rubia Abs
Themis Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero
Advogados da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP)
- Alexandra Xavier Figueiredo - OAB/MG 63.558
- Lenir Correia Coelho - OAB/RO 2424
Advogada e Assessora Jurídica do MPA/Rondônia
Advogada e Assessora Jurídica do MPA/Rondônia
- Alexandre Tortorella Mandl
OAB/SP nº 248.010
Assessor Jurídico do Movimento das Fábricas Ocupadas
Advogado trabalhador da Flaskô
- Julio Cesar Donisete Santos de Souza
OAB/MG 124405
Advogado CMP Triangulo e Alto Paranaíba e Instituto Cidade Futura
- Marleide Ferreira Rocha - OAB-DF 22115
- Flavia Carlet OAB-DF 23688
- Juvelino Strozake OAB/SP
- Patrick Mariano
- João Paulo do Vale de Medeiros
Advogado Oab/RN-9028
Militante da Renap e Pastoral Operária do RN
Advogado Oab/RN-9028
Militante da Renap e Pastoral Operária do RN
- Vandré Paladini Ferreira
OAB/SP 218.503
Advogado integrante do Coletivo de Comunicadores Populares
Assessoria jurídica ao MST e MTST, nas regionais Campinas.
OAB/SP 218.503
Advogado integrante do Coletivo de Comunicadores Populares
Assessoria jurídica ao MST e MTST, nas regionais Campinas.
- Francisca Martír da Silva OAB-CE 9.888
- Aline Cristina Maehler OAB 8.108/MT
Outras Assinaturas Individuais
- Danilo Chammas
- Nadine Borges
- Renata Tavares
Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro
- Profa. Dra. Vera Regina Pereira de Andrade (UFSC/CNPq)
Projeto de Pesquisa Universidade Sem Muros
[1] Informações disponíveis na página eletrônica do Tribunal Superior Eleitoral: http://divulgacand2010.tse.jus.br/divulgacand2010/jsp/framesetPrincipal.jsp
[2] Informações disponíveis na página eletrônica do Tribunal Superior Eleitoral: http://divulgacand2010.tse.jus.br/divulgacand2010/jsp/framesetPrincipal.jsp
[3] Informações disponíveis na página eletrônica do Supremo Tribunal Federal:http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=3956704
[4] ADI 4467. Petição Inicial do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=4467&processo=4467
[5] “6% dos eleitores desconhecem obrigação de levar título e documento para votar”: http://datafolha.folha.uol.com.br/po/ver_po.php?session=1050
[6] ADI 4467. “Decisão: Após o voto da Senhora Ministra Ellen Gracie (Relatora), concedendo a liminar para, mediante interpretação conforme, reconhecer que a falta do título eleitoral não impede o exercício do voto, no que foi acompanhada pelos Senhores Ministros Marco Aurélio, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa e Ayres Britto, pediu vista dos autos o Senhor Ministro Gilmar Mendes. Falou, pelo requerente, o Dr. José Gerardo Grossi e, pelo amicus curiae, o Dr. Fabrício Medeiros. Presidência do Senhor Ministro Cezar Peluso. Plenário, 29.09.2010. “ Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=3956704