domingo, 24 de março de 2013

Guerra às drogas viola direitos, por Maria Lúcia Karam


A criminalização do usuário de drogas viola a Constituição Brasileira na avaliação da juíza Maria Lucia Karam, porta-voz da Leap Brasil (Law Enforcement Aganst Prohibition – na sigla em inglês). A instituição luta pela eliminação da política proibicionista imposta pelo modelo de guerra às drogas, que indica um quadro de encarceramento da população negra norte-americana que ultrapassa os índices do regime do apartheid na África do Sul.
A LEAP foi fundada nos Estados Unidos em 2002 e chegou ao Brasil em 2010. Ela é formada por integrantes das forças policiais e da justiça criminal que lutam contra a atual política de drogas. A organização atua em 80 países e tem mais de 50 mil membros e apoiadores, dentre eles: policiais, promotores, juízes, agentes penitenciário, militares e outras pessoas não vinculadas às forças policiais ou ao sistema penal. Karam vai participar do Congresso Internacional sobre Drogas, entre 3 e 5 de maio, em Brasília.


Qual a sua avaliação sobre o modelo que guerra às drogas?Os relatórios anuais vindo dos organismos da ONU e os que comandam essa política reconhecem que, passado esses 100 anos de proibição e 40 anos de guerra às drogas declarada por Nixon, esse modelo fracassou. Os resultados mais visíveis são que as drogas foram barateadas, potencializadas, diversificadas e ficaram mais acessíveis. Além de falido, esse modelo mata mais pessoas do que o próprio consumo de drogas.
E sobre o modelo de criminalização do usuário?A criminalização da posse para uso pessoal é claramente inconstitucional, pois viola normas não só das constituições, mas as declarações internacionais dos direitos. O principio básico da democracia indica que todos têm que ser livres até o momento em que atingem o direito de terceiros. Na posse para o uso pessoal o máximo que a pessoa está fazendo é causar mal a si mesmo, e faz parte da liberdade individual a opção por se causar mal. Então, da mesma forma que não se pune a tentativa de suicídio, não se pode punir essa conduta. Acho que as pessoas têm que ter liberdade de se fazerem mal e o dever do Estado é garantir saúde a quem quiser ter saúde. Ninguém pode obrigar outro a ser saudável.
Qual a relação deste modelo com as pessoas que estão em vulnerabilidade social?Dados do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, divulgados em 2009, indicam que mais de 2,2 milhões de pessoas estão presas no país. Essa estatística também mostrou que a população negra representa 40% do total. Para cada 100 mil habitantes, existem mais de 4, 7 mil prisioneiros negros, 1 em cada 11 homens negros do país. Na época do Apartheid, na África do Sul, a proporção era de 800 por 100 mil.
O Brasil tem hoje a 4ª maior população carcerária do mundo, são mais de 500 mil presos por crimes como tráfico de drogas e roubo. Nos últimos 20 anos, a população carcerária do país cresceu 350%. Os negros representam quase 60% (275 mil) do total de detidos. O sistema penal atua assim, não é só em relação as drogas. No geral, são as pessoas marginalizadas que são os maiores alvos do sistema penal.
O que a sociedade pode fazer para mudar essa realidade?A primeira coisa a fazer é romper a diferença entre drogas lícitas e ilícitas. Álcool, tabaco, cafeína, maconha, cocaína e heroína, todas essas substâncias são psicoativas, pois tem o potencial de causar a dependência.
O produtor e comerciante de drogas lícitas realizam condutas perfeitamente legais enquanto o produtor e comerciante de maconha ou cocaína, que são substâncias semelhantes ao álcool e ao tabaco, é criminalizado. Dessa forma, você trata desigualmente condutas que na sua essência são iguais.
 "Em um mercado legal você tem como controlar e administrar isso, mas no mercado ilegal isso é completamente descontrolado"
Tendo conhecimento de todos esses critérios, por qual motivo se demorou tanto para se propor uma mudança de lei aqui no Brasil?É uma política funcional aos poderosos e que se baseia na falta de informação, preconceitos e que foi se consolidando por ser um instrumento de poder. Essa é uma das mantenedoras dessas condutas discriminatórias, pois o que ocorre hoje é um senso comum de que ao aprovar a regulamentação, legalização ou descriminalização das drogas vai alimentar o tráfico de drogas, e esse é um raciocínio completamente absurdo, pois não é segredo que a política de guerra às drogas falhou em todos os sentidos.
A Leap defende a legalização?Todas essas prisões e mortes ocasionadas por conta da proibição não conseguiram reduzir o consumo de drogas e até criaram novas substâncias como o crack. Em um mercado legal você tem como controlar e administrar isso, mas no mercado ilegal isso é completamente descontrolado, o que vai valer são as leis da economia em sua forma mais primitiva e drogas cada vez mais perigosas serão criadas. Por isso a Leap defende a legalização e a consequente regulação da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas.
Essa legalização se estenderia para todas as drogas?Sim, porque entendemos que quanto mais perigosa é uma droga, mais importante legalizar. Nos Estados Unidos, a pesquisa “Monitorando o Futuro”, feita com adolescentes de escolas médias, mostra que é muito mais fácil comprar drogas ilícitas do que as licitas porque no mercado ilegal é totalmente descontrolado e, portanto, os riscos a saúde são muito maiores. São as pessoas que agem nesse mercado ilegal que vão definir para quem e quais as substâncias serão vendidas e com o que serão misturadas.
Agora não há violência na produção e comércio de bebidas nos EUA, mas isso já aconteceu quando houve a proibição entre 1920 e 1933. Os gangsters trocavam tiros nas ruas assim como acontece hoje com as drogas.
Com a legalização, qual seria o papel do Estado?O Estado tem que garantir o atendimento e a prevenção da doença com campanhas educativas, como se faz com o cigarro, que é o único exemplo de redução de consumo de drogas que temos.
No Brasil diminuiu praticamente pela metade nos últimos 10 anos só com a modificação da mentalidade em relação a isso, ou seja, ninguém foi preso e nenhuma guerra foi declarada por conta do cigarro. Com a legalização, foi possível criar algumas regulações como a não fumar em lugares fechados e a vedação de publicidade.
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Artigo da Comissão Brasileira Sobre Drogas e Democracia: http://cbdd.org.br/pt
URL to article: http://cbdd.org.br/pt/2013/03/22/karam-guerra-as-drogas-viola-constituicoes-e-direitos-fundamentais/

 

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