Excelente e elucidativo artigo sobre a Teologia da Libertação e os Movimentos Sociais na América Latina.
Vale a leitura!
Abraços!
***
Os filhos da Teologia da Libertação
Marcelo Netto Rodrigues
em 06/10/2010
Frutos da “opção preferencial pelos pobres”,
movimentos sociais, MST e Zapatista, dão vida a um “espírito” que nasceu na
década de 1970
Imagine a seguinte conjuntura política: ditaduras
militares apoiadas pelos Estados Unidos em inúmeros países da América Latina. O
período? Fins da Guerra Fria, década de 1980. Os potenciais “inimigos” do Tio
Sam? Grupos guerrilheiros e partidos de esquerda. Certo? Errado. Para a CIA, “a
Teologia da Libertação e as suas células conhecidas por CEBs (Comunidades
Eclesiais de Base)” eram, há 30 anos, os reais agentes capazes de
“desestabilizar” a região.
De acordo com o documento redigido pelo governo
Reagan à época, conhecido como “Santa Fé II”, elaborado na cidade de mesmo
nome, situada no Novo México, ambas representariam “uma doutrina política
disfarçada de crença religiosa, com um significado antipapal e antilivre
empresa, destinadas a debilitar a independência da sociedade frente ao controle
estatal”. Ou seja, em outras palavras, “estariam a serviço do comunismo”, ou
melhor, contra o capitalismo.
Setembro de 2010. O “perigo comunista” da Teologia da
Libertação ressurge em noticiário nos Estados Unidos. O apresentador populista
da Fox News, Glenn Beck, poucos dias após acusar Obama de socialista e de ser
“um muçulmano que odeia os brancos” – em xenofóbico discurso ao lado de Sarah
Palin, realizado de forma ultrajante no mesmo local e dia que, em 28 de agosto
de 1963, Martin Luther King pronunciou o seu célebre discurso “I have a dream” –, muda de estratégia e
volta a afirmar que Obama é cristão, mas o acusa de “algo pior”: seguir os
ensinamentos “demoníacos” da Teologia da Libertação.
Com os olhos fixos na câmera, durante entrevista
para a própria Fox News, Beck incita seus telespectadores: “Pergunte a qualquer
um na Igreja Católica, eles viram, é marxismo fantasiado de religião. E
aconteceu na América do Sul”. Num macarthismo anacrônico – para não dizer risível
–, o teor de suas palavras e a sua expressão facial viajam no tempo como uma
reencenação piorada daquela cena clássica do filme (subliminarmente
anticomunista) Invasion of the Body
Snatchers (1956), na qual o personagem principal grita histericamente para
quem possa ouvi-lo para que não confiem nem em seus próprios vizinhos (pois
estes podem ser “um deles”, sem que você nem desconfie).
Marxismo como instrumento
Tirando o fato concreto de que uma busca na página
do World Factbook da CIA 2010 ainda
revele que, sob o tópico “grupos de pressão política”, encontram-se na mesma
categoria tanto a Igreja Católica e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST), no Brasil, quanto o Taleban, no Paquistão, e o Exército de
Libertação Nacional (ELN) e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia
(FARC), no país vizinho, há muito de ficção quando se associa diretamente a
Teologia da Libertação ao comunismo marxista e não este último e a própria
Teologia da Libertação ao assim chamado cristianismo primitivo – época que se
inicia com a morte de Jesus e vai até o ano de 325, quando Constantino
transforma o Cristianismo em religião oficial do Império Romano.
Isso porque o que há na Teologia da Libertação,
além da inspiração nos chamados primeiros cristãos, é o uso seletivo e crítico
do marxismo como instrumento de análise para desvendar os mecanismos que levam
as sociedades a terem estruturas econômicas e sociais injustas, com o intuito
de demonstrar ao cristão como ele deve agir no mundo. Elementos como o ateísmo
materialista, por exemplo, são rejeitados, e outros, assimilados, como a
crítica do capitalismo e do poder das classes dominantes, a inevitabilidade do
conflito social e a perspectiva da auto-emancipação dos explorados.
Na mesma lógica, Leonardo Boff, um dos principais
teólogos da libertação, em seu livro O Caminhar da Igreja com os Oprimidos
(1980), rejeita o materialismo dialético, mas reconhece o valor científico e
político do materialismo histórico, como método que permite denunciar as
falsificações ideológicas do capitalismo, e dar conta das verdadeiras causas
que geram o empobrecimento. Diz ele: “Quando agentes pastorais mergulham no
mundo cultural do pobre, não deixam de encontrar o marxismo, não como filosofia
materialista e negadora de Deus, mas como o único instrumento a seu alcance
para entender sua condição de explorados e como um caminho de organização, de
formação de consciência crítica e de mobilização dos setores populares”.
Boff, ainda em outro livro, de co-autoria com seu
irmão Clodovis Boff, Como fazer Teologia da Libertação (1986), detalha melhor
essa afinidade eletiva: “Na Teologia da Libertação, o marxismo não é tratado
como uma matéria em si mesmo, mas sempre da sua relação e em relação ao pobre.
[Assim,] colocando-se firmemente ao lado dos pobres, teólogos da libertação
questionam Marx: 'O que você pode nos dizer sobre a situação de pobreza e sobre
os meios para superá-la?' Aqui, os marxistas são submetidos ao julgamento dos
pobres e à sua causa, e não o contrário”.
Cristianismo Primitivo
Por outro lado, a associação entre os primeiros
cristãos e as CEBs – comunidades compostas por membros das classes populares
que, morando no mesmo bairro, se encontram para refletir e transformar a
realidade, por meio do método ver-julgar-agir, a partir da leitura da Bíblia em
articulação com os problemas reais da vida cotidiana – é repleta de sentido, já
que entre os primeiros a “novidade” que chamava a atenção era que todos,
pensando no bem-estar coletivo, usufruíam de seus bens em conjunto e haviam coletivizado
a posse das coisas.
Tal ineditismo de conduta aliado a um constante
ambiente de perseguições, viria a ser destacado por Engels, muitos séculos mais
tarde, em 1894, no seu O Cristianismo Primitivo, texto no qual o parceiro de
Marx enxerga pontos notáveis de contato entre a história do cristianismo
primitivo e a do movimento proletário moderno: “Tal e qual o movimento
proletário moderno, o cristianismo era em sua origem a expressão dos oprimidos
e se apresentava primeiramente como a religião dos escravos, dos libertos, dos
pobres, dos homens privados de direito e dos povos subjugados ou dispersos pelo
Império Romano”.
Assim, o novo, que surge na década de 1970 quando a
Teologia da Libertação é gestada não é a tal confluência entre cristianismo e socialismo
– que de longe sempre tiveram mais coisas em comum do que uma improvável
ligação entre o cristianismo e o capitalismo. Mas sim o fato de a Teologia da
Libertação ter trazido a luta pelo Reino de Deus para a Terra, utilizando-se do
marxismo como instrumento metodológico para combater as injustiças sociais
criadas pelo capitalismo, já que para ela, o Reino está bem próximo, ou seja, é
possível, está ao alcance de todos, aqui e agora.
Concílio Vaticano II (1962-1965)
Mas para que a Teologia da Libertação pudesse
encontrar terreno fértil para lançar raízes nessa direção foi fundamental o
aggiornamento propiciado pelo Concílio Vaticano II. De acordo com Clodovis
Boff, “o Vaticano II significou a 'deseuropeização' da Igreja e a sua abertura
verdadeiramente 'católica' [palavra de origem grega que significa universal] –
fato que só encontra, na história, paralelo com a ruptura da Igreja Primitiva
em relação à matriz hebraica e sua partida para o mundo grego”.
Dito em outras palavras, é como se o Concílio
Vaticano II (1962-1965) – e não o Concílio de Trento (1545-1563) – fosse a
esperada Contra-reforma Católica à Reforma Protestante, no que concerne à
recuperação de uma ética cristã que, entre outras coisas, condena explicitamente
a tese da predestinação de “alguns eleitos” e estende indiscriminadamente a
salvação a todos, incluindo aqueles marginalizados e excluídos pela
concentração capitalista decorrente da ideia salvífica em torno da vocação ao
trabalho e, até mesmo, a não-cristãos.
Desse modo, a Teologia da Libertação surge, a
partir de 1969, como prática pastoral latino-americana pensada em consonância
com o Concílio Vaticano II, após essa orientação ter sido definida na reunião
episcopal de Medellín (1968), o que preencheu o imaginário eclesial com a
temática Libertação, e ter sido aprofundada em Puebla (1979), com a evangélica
opção preferencial pelos pobres.
Mas quem são os pobres?
Neste ponto, diante do marxismo, a Teologia da
Libertação amplifica o conceito de “pobre”, indo ao encontro da compreensão que
hoje ativistas antiglobalização também já desenvolveram.
“Por 'pobre', na verdade, não estamos querendo
dizer aquele indivíduo pobre que bate na porta pedindo esmolas. Estamos falando
sobre o pobre coletivo, as “classes populares”, que são uma categoria muito
mais ampla do que o “proletariado” escolhido por Karl Marx (é um erro
identificar o pobre da Teologia da Libertação com o proletariado, apesar de
muitos dos seus críticos o fazerem): os pobres são também os trabalhadores
explorados pelo sistema capitalista; os subempregados, aqueles deixados de lado
pelo processo produtivo – um exército de reserva sempre à mão para substituir
aqueles que estão empregados; são os trabalhadores do campo, os trabalhadores
migrantes sazonais” (1986), segundo esclarecem os irmãos Boff.
Neste sentido, aquela
famosa frase do bispo brasileiro dom Hélder Câmara: “Quando dou comida aos
pobres, me chamam de santo; quando pergunto por que os pobres não têm comida,
me chamam de comunista” ganha
contornos reais e metafóricos. De fato, até mesmo Che Guevara uma vez, em
virtude da histórica religiosidade cristã do continente, sentenciou: “A
revolução na América Latina só acontecerá quando os comunistas deixarem de ser
preconceituosos com a fé dos cristãos; e os cristãos deixarem de ser
proselitistas com os comunistas. Nesse dia, a revolução será imbatível”.
Exemplo claro dessa associação a qual Che se refere foi a Revolução Sandinista
(1979), na Nicarágua, que chegou a ter vários ministros de Estado ligados à
Teologia da Libertação – inclusive padres.
Mas por que aparentemente a partir da década de
1990 a Teologia da Libertação parece entrar em refluxo? Teria o “espírito” da
Teologia da Libertação simplesmente evaporado da cena política, como num passe
de mágica, justamente quando tudo o que sempre esteve atrelado à sua agenda de
resistência e libertação humana finalmente ganhou dimensões e conexões
globalizadas?
Para se chegar a uma resposta plausível, alguns
pontos precisam ser elencados. Em primeiro lugar, por não possuir caráter
proselitista, a Teologia da Libertação sempre fomentou a secularização em seu
sentido mais amplo, já com o propósito de que em algum momento o seu “espírito”
viesse a se descolar da religião, ao incentivar a criação de organismos laicos
para exercerem influência no mundo. Muitos movimentos sociais, a princípio,
foram tutelados pela Teologia da Libertação, como por exemplo, o MST no Brasil
e os zapatistas no México.
MST
Fundado oficialmente em 1984, desde 1979, o
movimento contava com o apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT), órgão ligado
à CNBB, que contribuía na organização dos sem-terra para que eles construíssem
o seu próprio instrumento de luta.
Fora isso, a história não-oficial contada por
Ademar Bogo, um de seus principais dirigentes – ele próprio um ex-seminarista –
diz que a ideia de criação do MST surgiu “da cabeça” do já falecido bispo de
Chapecó, dom José Gomes, alinhado à Teologia da Libertação, que mandou cinco
ex-seminaristas se espalharem pelo país para iniciarem trabalhos de base com
trabalhadores rurais.
A “mística” do Movimento, suas decisões em
assembleias, a vida comunitária nos acampamentos e o estímulo ao trabalho em
pequenas cooperativas ou coletivos são traços marcantes dessa herança.
Zapatistas
Algo semelhante aconteceu com os zapatistas. Em
1994, quando os insurgentes apareceram houve grande confusão. Foram, a
princípio, descritos pelos meios de comunicação e pelo governo mexicano como
inspirados pela Teologia da Libertação, enquanto dom Samuel Ruiz, o bispo de
San Cristóbal de las Casas (Chiapas), era acusado de ser o guerrilheiro de
Deus. Só depois soube-se que “foram militantes marxistas que criaram o EZLN,
[e] que [este] não se refere ao cristianismo, mas antes à cultura maia”, como
explica o sociólogo Michael Löwy, no ensaio A Teologia da Libertação acabou?
(1996).
Tal “associação” entre marxismo e cristianismo na
origem dos zapatistas não é completamente descabida. Dom Ruiz, autor de La teologia bíblica de la Liberación
(1975), foi responsável por um trabalho de educação pastoral na região por
muito anos – com a ajuda de jesuítas, dominicanos e de ordens religiosas
femininas, o que resultou “numa vasta rede de 7.800 catequistas indígenas e
2.600 comunidades de base que contribuíram poderosamente para a conscientização
das comunidades indígenas, ajudando-as a tomar conhecimento de seus direitos e
a lutar para defendê-los”.
Além disso, há o detalhe de que o próprio
subcomandante Marcos, se vier a ser mesmo Rafael Sebastián Guillén Vicente,
como sustenta o governo mexicano, antes de começar a organizar os zapatistas,
por volta de 1984, supostamente teria passado um tempo na Nicarágua à época da
Revolução Sandinista, e que o próprio quando adolescente teria estudado no
Instituto Cultural Tampico, um colégio privado ligado à Companhia de Jesus, na
localidade de mesmo nome.
Transmutação
Um segundo aspecto inerente à Teologia da
Libertação é que ela nasce com a intenção de desaparecer, de não ser mais
chamada por este nome, por acreditar que quando o seu chamado fosse assimilado
pela teologia como um todo, e que esta o fizesse o seu próprio chamado, então o
seu nome poderia ser deixado de lado porque a esta altura todas as teologias
seriam teologias da libertação do seu próprio jeito – pois caso contrário, não
seriam teologias cristãs (Boff e Boff, 1986).
O chamado, como sabemos, sob o longo papado do
conservador João Paulo II (1978-2005), não foi o esperado, mas sim o da
“revaticanização” da Igreja latino-americana, com a censura à Teologia da
Libertação, o afastamento de bispos progressistas e a nomeação de padres
conservadores para os seus lugares. Assim, consequentemente, as CEBs foram
forçadas a diminuir sua atuação política e a Renovação Carismática, patrocinada
pelos Estados Unidos e incentivada pelo documento “Santa Fé II”, ganhou espaço.
Como consequência, a Teologia da Libertação não
desapareceu como o previsto. Seus mártires continuam a dar seu sangue seguindo
o caminho do padre guerrilheiro colombiano Camilo Torres (1966), do bispo de El
Salvador Oscar Romero (1980), do padre brasileiro Josimo Tavares (1986), da
freira estadunidense naturalizada brasileira Irmã Dorothy Stang (2005).
Mas o seu “espírito” ultrapassou os limites da
igreja, transfigurou-se, em busca de lugares mais propícios ao seu chamado, e
atua há algumas décadas em movimentos sociais nos quais é possível ver o Cristo
no rosto e no corpo do excluído, do pobre, da mulher oprimida, do negro, do
indígena, do desempregado. Esse “espírito” transmutado também pode ser
encontrado, em maior ou menor grau, nos governos Evo (Bolívia), Correa
(Equador), Lugo (Paraguai), Chávez (Venezuela), Lula (Brasil), Mujica (Uruguai)
e Funes (El Salvador).
Posto isto, o apresentador populista conservador da
Fox News citado no início desta análise não deveria estar preocupado com
os ensinamentos “demoníacos” da Teologia da Libertação, nem com o seu alegado
comunismo, e muito menos com o “espírito” que move Obama. Mas sim com o
“espírito” do cristianismo libertário que se desprendeu das amarras de sua
esfera religiosa e que a cada dia ganha mais corações e mentes na América
Latina.
Como disse Frei Betto, outro expoente da Teologia
da Libertação em entrevista recente ao site desinformemonos.org:
“Jamais haverá participação popular nos processos políticos latino-americanos
sem incorporar a religiosidade do povo. Aqui a porta da razão é o coração e a
chave do coração é a religião”. Oxalá esse “espírito” seja levado por correntes
de vento em direção ao Norte e contamine logo os Estados Unidos por inteiro.
Marcelo Netto Rodrigues é ex-editor do jornal
Brasil de Fato e cientista social.
Fonte: Lista de e-mail da RENAP
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