Cidades - Urgente: colocar a questão urbana na agenda nacional
A Carta Maior está abrindo um espaço semanal, que será coordenado pela professora Ermínia Maricato para dar à questão urbana o lugar que lhe deveria caber no debate público. "As cidades fornecem destaques diários para a mídia escrita, falada e televisionada. A questão urbana, então, ocupa um espaço prioritário na agenda política nacional. Certo? Muito longe disso, a questão urbana está fora da agenda política nacional. Na próxima semana leremos alguns dos mais informados e experientes profissionais e estudiosos de políticas urbanas no Brasil, que, além dessas virtudes, se classificam como ativistas de direitos sociais e justiça urbana", explica a arquiteta e urbanista no artigo que abre esta seção. Erminia Maricato - Especial para Carta Maior- Data: 08/06/2012
Enchentes, desmoronamentos com mortes,
congestionamentos, crescimento exponencial da população moradora de
favelas (ininterruptamente nos últimos 30 anos), aumento da segregação e
da dispersão urbana, desmatamentos, ocupação de dunas, mangues, APPs
(Áreas de Proteção Permanente) APMs (Áreas de Proteção dos Mananciais),
poluição do ar, das praias, córregos, rios, lagos e mananciais de água,
impermeabilização do solo (tamponamento de córregos e abertura de
avenidas em fundo de vales), ilhas de calor... e mais ainda: aumento da
violência, do crime organizado em torno do consumo de drogas, do stress,
da depressão, do individualismo, da competição. As cidades fornecem
destaques diários para a mídia escrita, falada e televisionada. A
questão urbana ocupa espaço prioritário na agenda política nacional.
Certo?
Muito longe disso, a questão urbana está fora da agenda política nacional.
As
conquistas institucionais nos anos recentes não foram poucas:
promulgação do Estatuto das Cidades, aprovação dos marcos regulatórios
do saneamento, dos resíduos sólidos, da mobilidade urbana, aprovação de
uma enxurrada de Planos Diretores, criação do Ministério das Cidades,
retomada das políticas de habitação e saneamento após décadas de
ausência do Estado. No entanto, a crise urbana está mais aguda do nunca.
Por que?
Numa sociedade persistentemente desigual as cidades
não poderiam expressar o contrário. Mas há algo nas cidades que é
central e ignorado. Trata-se do poder sobre o “chão”, ou seja, o poder
sobre como se dá a produção e a apropriação do espaço físico. De todas
as mazelas relacionadas acima, a primeira parte tem a ver com o “espaço
urbano” ou com as formas de uso e ocupação do solo, essa evidência que
nos cerca no cotidiano das cidades, mas que está oculta para Estado e
sociedade. Assim como no campo, a terra urbana (pedaço de cidade) é o nó
na sociedade patrimonialista.
A importância do espaço urbano
como ativo econômico e financeiro escapa à percepção da maior parte dos
urbanistas, engenheiros e economistas no Brasil (exceto dos que
trabalham para o capital imobiliário). O valor da terra e dos imóveis
varia de acordo com as leis ou investimentos realizados nas
proximidades. Poderosos lobbies atuam sobre os orçamentos públicos
dirigindo os investimentos e os destinos das cidades. Trata-se do que os
americanos, Logan e Molotch, chamaram de “máquina do crescimento”: a
reunião de interessados na obtenção de rendas, lucros, juros e...
recursos para o financiamento de campanhas, acrescentamos nós. O
planejamento urbano é o fetiche que encobre o verdadeiro negócio. É
comum que um conjunto de obras contrarie o Plano Diretor. O mais
frequente é vermos obras sem planos e planos sem obras.
O
governo federal retomou as políticas de habitação e saneamento e se
propõe a retomar a política de mobilidade urbana após décadas de
ausência promovida pelo ideário neoliberal. Mas a retomada desses
investimentos sem a reforma fundiária e imobiliária urbana (de
competência municipal) traz consequências cruéis como a explosão dos
preços dos imóveis. Durante os 50 anos em que urbanistas e movimentos
sociais defenderam a Reforma Urbana, a exclusão territorial foi
reinventada pelos que lucram com a cidade como ocorreu durante o
período do BNH.
Ao contrário de um desenvolvimento socialmente
justo e ambientalmente equilibrado, um dinâmico crescimento imobiliário
reproduz características históricas de desigualdade e predação ambiental
que, somadas ao grande número de carros que entopem a cada dia os
sistemas viários, apontam para um rumo de consequências trágicas. Este
tema deveria ocupar um lugar central na Rio +20.
Pesquisas
recentes da USP ampliaram o conhecimento sobre o número de patologias
causadas, na RM de São Paulo, pela poluição do ar, do som, ou pelos
congestionamentos de tráfego: doenças cardíacas, transtornos mentais,
ansiedade, depressão, estresse. O tempo médio das viagens diárias está
próximo das 3 horas, sendo que para um terço da população passa disso.
30% das famílias são chefiadas por mulheres que após a jornada de
trabalho chegam em casa e têm que dar conta dos filhos e do serviço
doméstico. Tanto sofrimento exigiria repensar a prioridade dada ao
automóvel em detrimento do transporte coletivo. Deve haver outras formas
de criar empregos e aumentar o PIB sem gerar tal irracionalidade (do
ponto de vista social e ambiental) urbana.
Os megaeventos (Copa,
Olimpíadas) acrescentam alguns graus nessa febre. Por isso, os despejos
de comunidades pobres que estão (e sempre estão) no caminho das grandes
obras está ganhando dimensões não conhecidas até agora.
Embora a
agenda social tenha mudado nos últimos 9 anos favorecendo ex-indigentes
e miseráveis (bolsa família, pró-uni, crédito consignado, aumento do
s.m.), embora as obras urbanas se multipliquem a partir do PAC e do
MCMV, ambos por iniciativa do governo federal, as cidades pioram a cada
dia. Distribuição de renda não basta para termos cidades mais justas,
menos ainda a ampliação do consumo pelo aumento do acesso ao crédito. É
preciso “distribuir cidade”, ou seja, distribuir terra urbanizada,
melhores localizações urbanas que implicam melhores oportunidades.
Enfim, é preciso entender a especificidade das cidades onde moram mais
de 80% da população do país e representam algumas das maiores metrópoles
do mundo.
A Carta Maior ofereceu um espaço semanal para
dar à questão urbana o lugar que lhe deveria caber na agenda política
nacional. Na próxima semana leremos alguns dos mais informados e
experientes profissionais e estudiosos de políticas urbanas no Brasil,
que, além dessas virtudes, se classificam como ativistas de direitos
sociais e justiça urbana.
Para seguir a trilha do
desenvolvimento urbano, e não apenas crescimento urbano, revertendo o
rumo atual, há conhecimento técnico, há propostas, há planos, há leis e
até mesmo experiência profissional acumulada no Brasil. Ainda que no
espaço de uma sociedade do capitalismo periférico ou “emergente”, como
quer o main stream, é possível diminuir um pouco as selvagens relações
sociais, econômicas e ambientais que vivemos nas cidades. Antes de
apresentar propostas, que são rapidamente repetidas para serem também
rapidamente esquecidas, é preciso mostrar porque a formulação de
propostas, planos e leis não bastam. A questão é essencialmente
política. É preciso mostrar a lógica do caos aparente, ou seja, a lógica
dos que ganham com tanto sofrimento e suposta irracionalidade. As
próximas eleições se referem ao poder local, ao qual cabe a competência
sobre o desenvolvimento urbano de acordo com a Constituição Federal.
Esperamos colaborar para diminuir o analfabetismo urbanístico e cobrar
dos candidatos a prefeitos e vereadores maior conhecimento e compromisso
com a justiça urbana.
(*) Erminia Maricato,
arquiteta-urbanista, professora titular aposentada da FAU USP e
professora da UNICAMP, é responsável por esta seção.
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