segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Função social da propriedade rural

Segue a íntegra da sentença da Juíza da Vara Agrária do Marabá - PA, em que julga improcedente o pedido de reintegração, face o não cumprimento da função social do imóvel rural.
Muito Bom!!!

Abraços,
Dani Felix

***
Processo n.º 0002505-14.2005.814.0028.
Autores: LOURIVAL DE SOUZA COSTA e MÔNICA RAMOS DE SOUZA.
Adv.: – OAB/PA n.º
Réus: SINDICATO DOS TRABALHADORES RURAIS DE RONDON DO PARÁ, JOSÉ SOARES DE BRITO e MANOEL PINHEIRO DOS SANTOS .
Adv.: José Batista Gonçalves Afonso – OAB/PA n.º 10.611.
Ação: Reintegração de posse – Fazenda Santa Mônica (Rondon do Pará).



SENTENÇA

“O Direito de propriedade (pública, coletiva ou individual) está subordinado ao comando de que ‘a propriedade atenderá a sua função social’ (CF, art. 5º, inciso XXIII). Ao direito subjetivo de propriedade está agregado outro valor, imanente a ele na dicção constitucional de 1988 – a função social. O direito de propriedade somente é eticamente válido se cumprida sua função social” (MATTOS NETO, Antônio José de. O direito agrário na constituição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 6)

Vol. I

Lourival de Souza Costa e Mônica Ramos de Souza, já qualificados nos autos, por meio de advogado habilitado, ingressaram com ação de interdito proibitório, com pedido liminar, perante o Juízo da Comarca de Rondon do Pará, contra o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rondon do Pará, José Soares de Brito e outras pessoas não identificadas, alegando ser senhores e possuidores do imóvel rural Fazenda Santa Mônica, situada no município de Rondon do Pará, com área de 2.787.38.52 ha, e que estão sendo ameaçados de esbulho do imóvel por parte dos requeridos, que estariam arregimentando inúmeras pessoas para ingressar na área.

Relata a inicial (fls. 06/16) que os autores residiam no imóvel, onde desenvolviam atividades voltadas à pecuária, possuindo rebanho de 1007 bovinos, além de diversas benefeitorias (casas, pastagens, currais, etc.).

Prosseguem afirmando que os réus estão ameaçando ingressar no imóvel, tendo disponibilizado dois caminhões com homens sem terra com destino ao imóvel, que já foi invadido em duas outras oportunidades, que foram repelidas de imediato pelos requerentes. Esclarecem, ainda, que o imóvel já foi vistoriado pelo Incra, concluindo-se que a área não se presta a assentamento de trabalhadores rurais dado a pobreza do solo.

Documentos acompanhando a peça exordial às fls. 19 a 57, entre eles escritura de compra e venda de parte do imóvel (1.287.38.52 ha), memorial descritivo do imóvel e laudo de vistoria preliminar do Incra, datado de 07/07/2003.

Termo de audiência de justificação prévia do alegado às fls. 61/62. 

Decisão deferindo a liminar pleiteada às fls. 64/65, prolatada pelo Juízo de Rondon do Pará. 

Contestação do requerido Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rondon do Pará às fls. 66/77, em que foi alegada a preliminar de incompetência do Juízo de Rondon do Pará em prol da Vara Agrária de Marabá por versar a matéria sobre conflito agrário.

Às fls. 96/97, os autores informam que as ameaças de esbulho se concretizaram em 12/06/2004 com cerca de 70 homens que invadiram a fazenda, fortemente armados, requerendo, por conseguinte, a expedição de mandado de reintegração de posse.

À guisa do pedidos dos autores e do requerido, o Juízo de Rondon do Pará declinou da competência para atuar no feito em prol desta Vara especializada, reconhecendo a existência de conflito conflito pela posse da terra rural, sendo os autos encaminhados à este Juízo.

Recebida a ação, o Juízo agrário deferiu a liminar de reintegração de posse, consoante decisão às fls. 111/114.

Em petição às fls. 129/132, instruída pelos documentos às fls. 133/, o Incra informou que o imóvel foi vistoriado pela autarquia e classificado como grande propriedade improdutiva, estando o respectivo procedimento pendente de conclusão apenas no que se refere à comprovação do domínio da área para se concluir pela inclusão do imóvel no programa de reforma agrária, razão pela qual requereu a suspensão do cumprimento da liminar existente no feito.

Com esteio no pedido formulado pelo Incra, o Juízo agrário determinou a remessa dos autos à Justiça Federal (fl. 129).

Vol. II

Às fls. 210/214, os autores também requereram o encaminhamento dos autos à Justiça Federal para decisão sobre o pedido de intervenção do Incra.

Juntada de procuração outorgando poderes a advogado pelo réu Manoel Pinheiro do Nascimento (fls. 244/245), que interpôs agravo de instrumento da decisão que concedeu a liminar de reintegração de posse, postulando a cassação da liminar (fls. 250/281).

Substabelecimento, com reservas, da procuração outorgada pelo requerido Manoel Pinheiro do Nascimento (fls. 287/288) e pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rondon do Pará (fls. 290/291).

Contestação apresentada pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rondon do Pará às fls. 293/315.

Nova ordem de encaminhamento dos autos à Justiça Federal (fl. 324), que, ao receber o feito, decidiu pela devolução do procedimento à este Juízo (fl. 382).

Às fls. 388/391, o Incra peticionou novamente nos autos informando acerca do andamento do procedimento administrativo visando a desapropriação para fins de reforma agrária do imóvel, requerendo a suspensão do cumprimento da medida liminar.

Ofício da Ouvidoria Agrária Nacional (fls. 394/395) pleiteando o não cumprimento da ordem liminar em relação ao imóvel, sob alegação de o mesmo ser improdutivo e haver suspeitas de não ter sido legitimamente destacado do patrimônio público para o particular.

Petição dos autores pleiteando o cumprimento da liminar (fls. 401/402), com reiteração do pleito às fls. 406/407, juntando cópia do acórdão que negou provimento ao agravo interposto pelos requeridos, mantendo a decisão que deferiu a liminar de reintegração de posse, bem como cópia de mandado de segurança impetrado contra o Incra, com decisão proibindo a desapropriação do imóvel, em virtude da ocupação da área.
Em análise aos vários pedidos acerca da liminar existente nos autos (autores, réus, Incra e Ouvidoria Agrária Nacional), bem como ao julgamento do agravo de instrumento que atacava a decisão, este Juízo concluiu pela inexistência de óbices para o efetivo cumprimento da ordem de reintegração, determinando sua imediata efetivação (fls. 449/450).

VOL. III
À fl. 463 temos certidão atestando a tempestividade da contestação dos requeridos.

O Ministério Público requereu a suspensão do cumprimento da medida liminar, sob o argumento que o título que acoberta o imóvel é falso e que a Fazenda Santa Mônica está inserida no perímetro da Gleba Azul, matriculada em nome da União, consoante informações do ITERPA e do INCRA, requerendo, ainda, diligências e juntada de documentos.

Ao apreciar o pedido ministerial, o Juízo decidiu pela suspensão da decisão liminar (fls. 528/529), tendo os requerentes agravado da decisão (fls. 531/550).

Réplica à contestação às fls. 555/564.

Decisão de saneamento do feito às fls. 567/568, com determinação de perícia pelo INCRA, ITERPA, IBAMA e designação de audiência de instrução e julgamento. No mesmo ato, manteve a decisão agravada.

Os autores arrolaram testemunhas para ser ouvidas na audiência de instrução, indicaram assistente técnico, bem como apresentaram quesitos para ser respondidos pela perícia (fls. 573/575), assim como os requeridos às fls. 577/579 e 581/582.

Vol. IV.

Audiência às fls. 630/632, em que as partes convencionaram postergar a audiência de instrução e julgamento para após a realização das perícias.

À fl. 684, o ITERPA informa que foi declarada a falsidade do título definitivo em nome de Rosa de Oliveira Coelho e do título de legitimação de posse em nome de Arlindo Moreira Carmona.

Laudo pericial apresentado pelo INCRA às fls. 692/869.

VOL. V

Laudo pericial do IBAMA às fls. 883/886.

Acórdão referente ao julgamento do agravo de instrumento interposto pelos requeridos, concluindo pelo conhecimento do recurso e negativa de provimento, confirmando, assim, a concessão da liminar deferida nos autos (fls. 890/896).

Decisão convertendo em retido o agravo de instrumento interposto pelos autores, em razão da decisão que suspendeu a liminar (fls. 898/905).

Audiência de instrução e julgamento às fls. 946/952, em que foram ouvidos o autor, o requeridon Raimundo Nonato Florindo Filho, e testemunhas apresentadas pelas partes.

Considerando a possibilidade de acordo entre as partes, foi designada nova audiência que, realizada, não logrou êxito em conciliar as partes (fl. 960/961), sendo os autos encaminhados para memoriais finais.

Alegações finais dos réus às fls. 964/982 e dos autores às fls. 989/995.

O Ministério Público, às fls. 997/1004, apresentou memoriais finais requerendo a improcedência do pedido.

O feito procedimental é formado por cinco volumes principais, atualmente com 1005 folhas.

É o relatório.

DECIDO.

No mérito, a ação versa sobre pedido de reintegração de posse. O pedido tem fundamento no art. 926 do Código de Processo Civil, que diz: “o possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação e reintegrado no caso de esbulho”.

Na hipótese trazida à apreciação, o autor postula a reintegração de seu direito fático, em razão de os demandados terem ingressado no imóvel, impedindo o livre uso e gozo do bem. Afirma ter o domínio, mas estar despojado do exercício da posse, por esbulho dos réus.

“Esbulho, por sua vez, é ato praticado por terceiro que importe, para o possuidor, perda da posse, contra sua vontade. Em outras palavras, o esbulho consiste no ato pelo qual o possuidor se vê despojado da posse injustamente” (in: Código de Processo Civil Interpretado. Antônio Carlos Marcato et al. 1a. Ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 2412).

“A ação de reintegração de posse, dotada de efeito executivo, é meio adequado para entrega da coisa, objeto da demanda, se caracterizado o esbulho (art. 926 do CPC)” (STJ, ROMS 256/SP, 3a. Turma, rel. Min. Waldemar Zveiter, j 22.5.1990, DJ 4.6.1990, p. 5057).

Inicialmente, cabe-nos destacar uma questão relativa à competência da Região Agrária para julgamento do feito. Como se sabe, a criação da sede tem amparo constitucional no art. 126 da Constituição Federal de 1988, in verbis: “Para dirimir conflitos fundiários, o Tribunal de Justiça proporá a criação de varas especializadas, com competência exclusiva para questões agrárias”.

No presente caso, decerto, não há dificuldade para reconhecer no litígio envolvendo as partes a existência de conflito agrário, classificando-se este como uma demanda coletiva, seja pela natureza das pessoas, seja pelo interesse, em relação a uma área em que haja atividade rural.

Em outros termos, o conflito fundiário, necessariamente, deverá passar pelo conceito de Direito Agrário, abaixo colacionado:

“É um ramo autônomo da Ciência do Direito, composto de normas que, iluminadas por princípios de natureza social, regulam as relações decorrentes da atividade rural” (in: Direito Agrário. Alencar Mello Proença. 1ª ed. Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 20).

Nessa esteira, tratando a demanda de questão possessória afeta à Região Agrária, e não apenas a uma das varas cíveis residuais, pode-se perceber que a matéria não deverá apenas repetir a visão civilista, merecendo a discussão versar sobre a posse agrária e, mais especificamente, da posse, como reflexo da propriedade, cumprindo função social.

A aferição, diga-se de passagem, serve para toda ação em curso na sede agrária especializada, uma vez que o princípio da função social da propriedade sobre qualquer bem, está hoje solidificado no texto constitucional (art. 5º, XXIII, e art. 170, inc, III, CF/88). E a função social do imóvel rural, que mais interessa no presente feito, também tem assento no mesmo texto, em seu art. 186, como, de resto, já estava desenhado no art. 2º e respectivo § 1º, do Estatuto da Terra (Lei n.º4504, de 30.11.64).

Em outros termos, quando se estiver discutindo posse decorrente de conflito agrário, com competência exclusiva das Regiões Agrárias, imprescindível ao operador do Direito, em análise sistemática da Constituição Federal, enquadrar a controvérsia no Capitulo III, do Título VII da Lei Maior (Da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária).

“A definição civilista que assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, bem como reavê-los de quem quer que injustamente os possua, não permite a exata compreensão da noção do direito de propriedade rural, porque não leva em consideração a natureza específica da terra, seu caráter sociológico, enfim, sua finalidade social” (in: A questão agrária e a Justiça. 1ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 119).

Vale registrar o pensamento de Fernando Reis Vianna, ao discorrer sobre a necessidade de instalação de uma Justiça Agrária:

“De nada adiante fixar normas e procedimentos intervencionistas se apreciação dos mesmos recairá num Poder Judiciário sobrecarregado e de pouca sensibilidade aos problemas agrários, além de bastante influenciado pelos princípios clássicos de uma legalidade liberal (...) para a consecução dos objetivos políticos traçados pelo Poder Público com a sistematização do Direito Agrário, necessário se faz a criação de uma justiça especializada, sensível ao sentido político do Direito Social, nos moldes da já existente Justiça do Trabalho (...) uma justiça Especializada propiciará o nascimento de métodos e procedimentos próprios para assegurar as bases da Justiça Social, e cujos frutos serão um edifício novo dos direitos, obrigações, e instrumentos, que permitirá reduzir ou fazer desaparecer certas oposições ou tensões sociais, além de resolver discordâncias no domínio das relações sociais e econômicas, que a força normativa do Direito atenderá.” (in: Revista do direito agrário. Brasília: INCRA, p. 61-63).

Importante asseverar, outrossim, que o Direito Civil, após a entrada em vigor do Código Civil de 2002, ganhou ares de adequação publicista, o que também deve ser levado em consideração nas demandas possessórias.

Assim, este juízo se alinha ao entendimento de que o proprietário rural somente terá direito à reintegração de posse se estiver no exercício da “posse agrária”, qual seja, a posse civil somada aos requisitos de cumprimento da função social do imóvel rural.

Nesta esteira, temos a redação do art. 1228, § 1º do CC: “O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”.

“A noção tradicional pela qual o proprietário tem poderes (usar, fruir, dispor e reaver) é substituída pela idéia de atributos ou faculdades, em razão das limitações ao direito de propriedade impostos pela Constituição Federal (...) A propriedade privada é compatível com o direito primário de cada homem aos bens exteriores, desde que respeitado o interesse social.

O individualismo característico dos séculos XVIII e XIX é substituído pela idéia de coletivismo em que a função social passa a ser considerada parte da própria construção do conceito. Como direito complexo que é, a propriedade não pode sobrelevar outros direitos, particularmente aqueles que estão em prol dos interesses da coletividade” (in: Os 20 anos da Constituição da República Federativa do Brasil. Artigo: O Código Civil de 2002 e a Constituição Federal: 5 anos e 20 anos. Alexandre de Morais et. al. 1a. Ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 500).

Feita a referida digressão, em suma, entendo que o presente conflito deverá ser apreciado com a visão essencialmente constitucional. A hierarquia das normas deve repulsar o apego excessivo à legislação infraconstitucional.

No caso em comento, restou saneado em audiência preliminar (fls. 567), que entre os pontos controversos estariam a posse agrária (a) e o atendimento da função social da propriedade da área (k), com âmbito constitucional.

Não há outra questão de mérito a enfrentar, já que o ato de ingresso não é refutado pela parte adversa.

Nesta linha de raciocínio, a posse se caracteriza como requisito ao autor para ter garantido o direito de propriedade. No conceito técnico e tradicional, o instituto é de natureza fática, ou seja, a utilização de um bem como se dono fosse.

“Desse modo, a doutrina tradicional enuncia ser a posse relação de fato entre a pessoa e a coisa. A nós parece mais acertado afirmar que a posse trata de estado de aparência juridicamente relevante, ou seja, estado de fato protegido pelo direito. Se o Direito protege a posse como tal, desaparece a razão prática, que tanto incomoda os doutrinadores, em qualificar a posse como simples fato ou como direito” (in: Direito Civil: Direitos Reais. Silvio de Salvo Venosa. 4a. Ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 42).

Somente quem tem a posse pode protegê-la em juízo, como reflexo do jus possessionis. Atos que não induzem posse repulsam as demandas possessórias, classificados como mera tolerância ou permissão, consoante disposição do art. 1.208 do CC.

“Na posse precária, há sempre um ato de outorga por parte de um possuidor a outro. Nos atos de tolerância ou permissão citados no dispositivo, essa relação de ato ou negócio jurídico não ocorre” (IDEM, p. 78).

Em uma primeira discussão do feito, há elementos documentais no processo demonstrando que o título que acobertava a área da fazenda foi declarado falso pelo Estado do Pará, resultando que a área em litígio não foi regularmente transferida do patrimônio público para o particular, permanecendo sob o status de área pública.

Desta feita, ante a falsidade manifesta do título que acobertava o imóvel, conclui-se que a posse sustentada pelo autor está fulminada pelo instituto da precariedade e eivada do vício da má-fé, que atinge a posse desde o seu nascedouro fraudulento até as suas sucessivas transmissões, conforme preceitua o art. 1203, do Código Civil, ao dispor “salvo prova em contrário, entende-se manter a posse o mesmo caráter com que foi adquirida”.

Assim, conclui-se que a posse argüida pelo autor era sustentada em título falso, possivelmente em mais um dos casos de grilagem que afetam o patrimônio imobiliário do Estado, e que vem sendo frontalmente atacada pelo Poder Judiciário, por meio do bloqueio administrativo de todas as matrículas de imóveis com indícios de irregularidade determinado pelo Provimento 013/2006, editado pela Corregedoria de Justiça das Comarcas do Interior, e com posterior ato de cancelamento de tais matrículas, determinado pelo Conselho Nacional de Justiça.

Destarte, padecendo a posse de tais vícios insanáveis (precariedade/má-fé), resta evidente que não merece procedência a pretensão do autor.

“Direito Civil e Processual Civil – Ação de Reintegração de Posse – Termo de Permissão de Uso a Título Precário a Oneroso – Inadimplência – Configuração do Esbulho – 1. A posse é condição de qualquer ação possessória, e não havendo posse sobre bens públicos, senão quando seu uso for concedido por Lei específica, a mera detenção ou ocupação, ainda que não clandestina, isto é, quando permitida, é sempre a título precário. 2. Ihering: "as coisas sobre as quais não pode haver um direito de sociedade não podem também ser objeto de posse no sentido jurídico: onde não pode haver propriedade, objetiva ou subjetivamente, também pode haver posse". 3. O título é uma permissão precária de uso outorgada por pessoa jurídica de direito público. O bem (a coisa) pertence ao patrimônio público. 4. Não provimento do recurso.” (TJMG – APCV 000.307.168-5/00 – 6ª C.Cív. – Rel. Des. Célio César Paduani – J. 17.03.2003)

Importante destacar, de igual forma, como bem o fez o órgão ministerial, em suas alegações às fls. 1003, que já se encontra firmado o entendimento jurisprudencial no sentido que não merece proteção possessória o particular que ocupa bem público, por ser considerado mero detentor, afastando, inclusive, a argumentação de boa-fé do detentor, consoante julgado colacionado pelo Ministério Público e que aqui deixa de se repetir por estar transcrito às fls. 1003/1004.

Não bastasse tal fato, no que concerne às exigências previstas no art. 186, da Constituição Federal de 1988, cabia ao autor demonstrar que empregou ao imóvel a função social exigida pela carta magna e, por conseqüência, exercia a posse agrária sobre a área.

Em relação ao aproveitamento racional e adequado do imóvel, tido como produtividade, o laudo pericial foi conclusivo que o autor não atendia aos requisitos de produtividade do imóvel mesmo antes de a ocupação por parte dos demandados, fato também corroborado pela declaração testemunhal prestada por Sávio Coelho Alves à fl. 951.

No que concerne ao requisito da utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, o laudo do IBAMA também aponta pelo não cumprimento à legislação ambiental mesmo antes da ocupação dos demandados, com desmatamento em área de preservação permanente e não obediência à manutenção de reserva legal nos patamares legais.

Importante destacar que o mandamento constitucional é límpido em esclarecer que os requisitos da função social hão de ser cumpridos de forma simultânea, o que não se caracterizou nos autos, diferentemente do que argumentou o autor em memoriais finais, restando evidenciado a descumprimento da função social da propriedade imobiliária agrária em apreço.

“A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos (art. 186): aproveitamento racional e adequado; a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho; exploração que favoreça o bem estar dos proprietários e trabalhadores” (in: Direito Constitucional. Alexandre de Moraes. 19ª Ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 728).

“Impõe-se assinalar, neste passo, que os requisitos alinhados nos preceitos legais examinados devem ser observados simultaneamente, vale dizer, todos ao mesmo tempo. Não se cumpre função social, observando-se apenas um ou dois requisitos. (...) Se há trabalho escravo ou a exploração do trabalho de menores, descumpre-se a função social, à luz da legislação vigente” (in: Direito Agrário Brasileiro. Benedito Ferreira Marques. – 7. ed. rev. e ampl.-São Paulo:Atlas, 2007, p. 40)

Os defensores de que a discussão de função social não deve adentrar na seara possessória estão em total dissonância com o mandamento constitucional e apegados umbilicalmente à legislação infraconstitucional, que deve ser interpretada e aplicada à luz da Carta Política de 1988, pois o fundamento do regime jurídico da propriedade é a Constituição, e este direito só se garante uma vez atendida a função social.

“Embora a função social da propriedade seja, hoje, no país, mandamento constitucional, o que ainda se observa é uma perseverante manutenção de seu conceito individual ou privatístico, numa intrigante distonia entre o direito positivado e a realidade social de sua aplicação, mesmo por aqueles que operam a ciência jurídica e sedimentam opiniões através da doutrina e da jurisprudência, como se o conceito do Código Civil, uma lei menor, ainda vigorasse, e não tivesse sofrido redimensionamento conceitual pela Carta Constitucional vigente” (BARROS, Wellignton Pacheco. Curso de Direito Agrário. Vol. 1. 5. ed. revista e atualizada. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007, p. 42).

Desta feita, podemos concluir que a intenção do legislador foi cristalina ao determinar que o imóvel rural só merece proteção como direito individual se preenchidos os requisitos previstos para o cumprimento da função social, posicionamento alinhado com a mais avançada doutrina em torno da matéria, senão vejamos:

“A proteção possessória assegurada no Código Civil tem como pressuposto o cumprimento da função social da propriedade rural, ou seja, somente as propriedades rurais que cumpram sua função social é que poderão ter assegurada a proteção possessória” (GRAU, Eros Roberto. Parecer. In: STROZAKE, Juvelino (org.). A questão agrária e a justiça. São Paulo:RT, 2000, p. 201)

“Para julgamento do mérito, deve o magistrado socorrer-se efetivamente dos laudos, e, se constatado o não-cumprimento da função social, julgar improcedente a reintegratória”. (OLIVEIRA, Umberto Machado de Oliveira. Princípios de Direito Agrário na Constituição Vigente. Curitiba: Juruá, 2006, p. 179).

Compreendo, pragmaticamente, que o pedido deva ser julgado improcedente, tal como dito alhures, quando o requerente não comprova a posse agrária. Afinal, o art. 927, I do CPC, deve ser interpretado conforme a Constituição Federal, para que a prova de posse ali exigida seja cumprindo função social.

“Agora, porém, diante do novo conceito de propriedade no direito positivo brasileiro – consubstanciado no art. 1228 e seu respectivo § 1º do Código Civil -, a teoria objetiva da posse formulada por Jhiering há de ser concebida sob nova óptica, no sentido de que a propriedade que não cumpre função social não pressupõe posse e, nesse caso, não há falar em proteção jurídica da posse, muito menos como corolário da propriedade.
(...)
Destarte, assiste razão à emergente doutrina defensora da conveniência e necessidade de se exigir do autor de uma ação reintegratória de posse - em face de ocupações coletivas promovidas pelos movimentos sociais -, além dos requisitos alinhados no art. 927, do Código de Processo Civil, também a prova do cumprimento da função social na integralidade de seus requisitos.” (in: Direito Agrário Brasileiro. Benedito Ferreira Marques. – 7. ed. rev. e ampl. - São Paulo:Atlas, 2007, p. 47 e 48) grifos nosso.

Ante o exposto, com esteio no art. 186, incisos I a IV, da Constituição Federal de 1988, c/c art. 2º, § 1º, do Estatuto da Terra, c/c art. 1228, § 1º, do Código Civil e 927, I do Código de Processo Civil, JULGO IMPROCEDENTE o pedido de proteção possessória formulado pelos autores, em razão de a posse agrária alegada não restar caracterizada pelo não cumprimento da função social do imóvel rural, determinando, por conseguinte, a EXTINÇÃO DO PROCESSO COM JULGAMENTO DE MÉRITO, nos termos do art. 269, I do CPC.

Condeno os autores em custas e honorários advocatícios, que arbitro em 10% sobre o valor da causa.
Dê-se ciência ao MP.
Cientifique-se o Estado do Pará e o INCRA dos termos desta decisão.
Após trânsito em julgado, arquive-se.
P.R.I.

Marabá, 15 de dezembro de 2010.

CLAUDIA REGINA MOREIRA FAVACHO MOURA
Juíza de Direito titular da Região Agrária de Marabá

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