segunda-feira, 1 de abril de 2024

RENAP/SC e outras entidades enviam Solicitação de Prorrogação do Prazo de Habilitação de Entidades Votantes e de Candidaturas para o Cargo de Ouvidor(a)-Geral da Defensoria Pública estadual




À COMISSÃO ELEITORAL DO EDITAL 01/2024 DA DEFENSORIA PÚBLICA DE SANTA CATARINA

Florianópolis, 29 de março de 2023.


Assunto: Solicitação de Prorrogação do Prazo de Habilitação de Entidades Votantes e de Candidaturas para o Cargo de Ouvidor(a)-Geral da Defensoria Pública

Escrevemos em nome da Rede Nacional de Advogados/as Populares para expressar nossa preocupação em relação ao prazo atualmente estabelecido para a habilitação de entidades votantes e de candidaturas para o Cargo de Ouvidor(a)-Geral da Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina.

Entendemos a importância de garantir um processo eleitoral transparente e inclusivo para a Ouvidoria-Geral, considerando especialmente o caráter de participação popular constitutivo deste órgão. No entanto, temos observado junto aos movimentos sociais aos quais temos proximidade que não existe pleno conhecimento em relação à existência do processo em curso. Isso tem nos causado preocupação em relação a uma falta de publicidade do edital, a qual deve ser observada de modo a garantir a ampla participação dos movimentos sociais e da sociedade civil organizada neste importante processo democrático.

Em breve restrospectiva, cabe relembrar que há dois anos, foi deflagrado o primeiro processo eleitoral para o cargo de Ouvidor(a)-Geral da Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina - DPE SC, fruto de muita luta dos movimentos sociais para garantir um espaço democrático para dialogar sobre os desafios e dificuldades na garantia dos direitos das pessoas vulneráveis do Estado e o papel da Defensoria Pública nesse contexto. 

Em outubro de 2021, iniciaram debates sobre como se daria aquele processo. Na época, os movimentos sociais de Santa Catarina acompanharam de perto as discussões e o seu desenrolar. Tanto o é que o processo foi marcado por diversas alterações de edital, especialmente sobre ampliação de prazo. É importante lembrar que o Edital 01/2021 de 1º/10 previa o prazo de inscrição de candidaturas e entidades de 04 a 18 de outubro, mas foi ampliado até o dia 21 do mesmo mês. Nesse sentido, a participação social foi uma das marcas no último processo: diversos movimentos, entidades e defensoras e defensores de direitos humanos de Santa Catarina estiveram presentes na última eleição, do início ao fim. 

Este ano, fomos surpreendidos com o Edital 01/2024, que não foi construído junto aos movimentos sociais e não foi devidamente publicizado. A falta de aviso prévio sobre o processo eleitoral somada à falta de publicização das eleições gera grandes dificuldades para os movimentos sociais organizarem candidaturas para Ouvidoria e participação como entidades votantes. Cabe destacar que o prazo de inscrição já exíguo, de aproximadamente 2 semanas, teve seu início junto da publicação do edital, não tendo ocorrido uma publicização anterior de que as eleições iriam acontecer em breve, com calendário apresentado, etc. Isso fez com que as eleições da Ouvidoria-Geral não estivessem “na ordem do dia” das reuniões e agendas de diversos movimentos sociais. Especialmente aquelas entidades que não participaram do último processo eleitoral estão mais prejudicadas, pois têm poucos dias para se apropriar sobre a discussão e organizar uma documentação extensa de um processo que jamais tiveram contato.

Esse procedimento excludente não é compatível com a natureza da Ouvidoria-Geral e com as práticas dos movimentos sociais. Legalidade não é igual a legitimidade. Se este edital cumpre com os requisitos formais - o que é discutível, pois não teve ampla publicização e não cumpre com os 120 dias de antecedência do fim do mandato exigidos -, tem dificultado, contudo, a necessária participação dos movimentos sociais na Ouvidoria e na Defensoria Pública.

E, um ponto de extrema importância. Esse processo eleitoral deveria ter sido construído através de uma Plenária com os Movimentos/Sociedade Civil, na qual a Ouvidoria prestasse contas dos dois anos de mandato. Com avaliações das dificuldades e avanços, para que, inclusive os candidatos pudessem construir seus planos de trabalho para a continuidade da ouvidoria de forma a que a mesma avance em sua atuação. 

Desta forma, gostaríamos de solicitar respeitosamente a prorrogação do prazo de habilitação de entidades votantes e de candidaturas por um período adicional de 30 dias. Acreditamos firmemente que essa prorrogação permitirá que mais entidades e candidatos/as sejam adequadamente informados sobre o processo eleitoral em andamento, possibilitando uma participação mais ampla e representativa.

Nosso objetivo final é garantir que o processo de seleção do Ouvidor(a)-Geral da Defensoria Pública seja verdadeiramente inclusivo e representativo das diferentes vozes e interesses da sociedade civil. Estamos dispostos a colaborar e apoiar quaisquer medidas adicionais necessárias para facilitar este processo de prorrogação.

Agradecemos antecipadamente sua atenção a este assunto e esperamos uma resposta favorável à nossa solicitação. Estamos à disposição para discutir qualquer aspecto adicional que possa ser necessário.

Atenciosamente,

Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares em Santa Catarina - RENAP/SC


Quem quiser aderir a presente carta favor enviar e-mail para luziacabreira@gmail.com.


Assinam também esta solicitação:

Brigadas Populares

IGENTES - Instituto Gentes de Direitos

MAB - Movimento dos Atingidos e Atingidas por Barragens 

MNLM - Movimento Nacional de Luta por Moradia

IBDU - Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico - Conselho Nacional

IBDU - Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico - Coordenação Regional Sul


sexta-feira, 9 de junho de 2023

[COLETIVO DE VÍTIMAS CES-UC/PT] 3a CARTA ABERTA

                                                                                                                                                                                                    [REPLICANDO A ÍNTEGRA AQUI] 


Terceira carta do Coletivo de Vítimas sobre os recentes posicionamentos de Boaventura de Sousa Santos

 

SEM ASSUMIR A RESPONSABILIDADE POR ATOS CONCRETOS DE ABUSO COMETIDOS, NÃO HÁ AUTOCRÍTICA

 

Apresentamo-nos como um Coletivo de Mulheres que sofreu diferentes tipos de violência, resultante do padrão de abuso de poder naturalizado nas equipas de trabalho lideradas por Boaventura de Sousa Santos e percebido como inevitável pelas pessoas que ocuparam lugares de autoridade no CES durante muitos anos. Abaixo, juntamos a nossa carta inicial. Desde que começámos a partilha das nossas reflexões, o número de pessoas aumentou. Temos estado em contacto com outras mulheres, que viveram histórias parecidas com a nossa. As situações de abuso experienciadas não se limitam a momentos inconvenientes promovidos por um homem incapaz de entender que o mundo mudou. É muito difícil acreditar que um sociólogo profissional, internacionalmente considerado um dos maiores intelectuais de esquerda, não consiga entender as mudanças da sociedade e adaptar-se a elas. Mesmo com todas as condições e o poder que Boaventura teve sempre à disposição, mesmo que seus estudos tenham sempre chamado a atenção para o patriarcado como forma de opressão, Boaventura ignorou o que escreveu e não se adequou às exigências de um mundo menos opressivo. Seu comportamento com as equipas, colegas de trabalho, estudantes e orientandas não foi reflexo cultural dos tempos, mas uma escolha consciente.

As nossas experiências permitem-nos afirmar que as contradições evidentes entre a teoria de Boaventura de Sousa Santos e as relações de poder normalizadas na sua cultura de trabalho nunca puderam ser problematizadas, porque manter as hierarquias, com seus padrões de exploração e abuso, garantia-lhe vantagens evidentes de que não estava disposto a abdicar. Uma pessoa disposta a fazer uma autocrítica deve, desde logo, reconhecer que, em decorrência das relações desiguais que promoveu, consciente ou inconscientemente, recebeu vantagens. No nosso grupo, há mulheres que acumularam traumas no contexto da relação laboral com Boaventura de Sousa Santos, com sério impacto nas suas carreiras. O primeiro conjunto de perguntas que colocamos é: o Boaventura que agora faz uma autocrítica admite que, no seio da cultura de relações desiguais que promoveu, foi altamente privilegiado? Que privilégios reconhece? Que prejuízos e danos causou às mulheres com quem teve uma relação laboral ou de privilégio numa hierarquia académica? Uma autocrítica genérica não recompõe danos, nem supera desigualdades. É preciso assumir responsabilidades e fazê-lo de forma concreta.

O nosso Coletivo está focado em pressionar a constituição de uma comissão centrada na proteção das vítimas e não na defesa dos agressores. Esse é o nosso objetivo. Não queremos apelar ao cancelamento, nem o desejamos, queremos a apuração íntegra dos fatos, o respeito pelos direitos das vítimas e pelas suas histórias de dor e sofrimento. Queremos justiça! A necessária investigação dos casos tem que assegurar um espaço em que as vítimas possam testemunhar sem medo de retaliações. Sabemos que o poder está desigualmente distribuído e é por isso que muitas mulheres são silenciadas. É imprescindível que a Comissão seja instaurada e que a absoluta independência da Comissão em relação ao CES seja garantida. Desde a primeira carta que endereçamos ao CES, muito embora tenhamos obtido uma resposta célere e indicando preocupação em garantir os direitos das vítimas, nada se alterou. O que temos visto é Boaventura a usar o poder que tem para garantir tempo de antena e veicular à exaustão a sua versão dos factos, enquanto nós aguardamos e torcemos para que os procedimentos do CES sejam escorreitos e garantam que os nossos direitos serão respeitados e que seremos acolhidas num contexto seguro para apresentarmos as nossas histórias, juntamente com as evidências que estamos reunindo. É, por isso, preocupante que as notícias que chegam ao nosso conhecimento sobre a Comissão venham da comunicação social e nos gerem insegurança sobre como de facto irá funcionar. Em dado momento, há referência de que a Comissão será composta por um elemento do CES e duas pessoas externas. Em outro momento, há referência de que a Comissão será totalmente independente. O nosso segundo conjunto de perguntas é: Quando serão conhecidos do público os termos de funcionamento da Comissão (seu mandato, garantia de autonomia e funcionamento independente, objetivos, regras éticas que está obrigada a cumprir, regras de sigilo que irá seguir, regras a serem seguidas pelo CES para seleção das pessoas)? O CES pretende apresentar um conjunto mínimo de compromissos públicos sobre a Comissão e seu funcionamento e algum cronograma que assegure uma seleção criteriosa de profissionais e garanta quando iniciarão e como serão conduzidos os trabalhos?

A resposta que Boaventura de Sousa Santos fez circular em reação às acusações da ativista indígena Mapuche Moira Millan não nos convenceu. Não deixa de ser surpreendente ver como Boaventura, um intelectual ativista de causas progressistas, entre elas o feminismo, seguiu à risca as estratégias de desmoralização das vítimas e o argumento da falta de denúncia quando as violências ocorreram no contexto de uma estrutura em que ele detinha um altíssimo poder hierárquico e alta influência sobre a carreira e o universo de trabalho ou ativismo das suas vítimas. Respondemos à carta no dia 27 de abril, ainda que tenha tido pouca visibilidade, sobretudo nos meios de comunicação social portugueses (link: https://sol.sapo.pt/artigo/797956/boaventura-sousa-santos-coletivo-de-mulheres-vitimas-de-assedio-responde-a-argumentos-de-professor). 

O último texto que Boaventura de Sousa Santos pôs em circulação, contrariando o próprio título, não é uma autocrítica. Aqui, mais uma vez, Boaventura segue a cartilha: fazer seguir às tentativas de desmoralização das vítimas, uma autocrítica absolutamente protocolar que, no fundo, é mais um documento para tentar convencer o público da alegada injustiça que sofre e que não é responsável pelos atos de que está acusado, apesar de existir um número cada vez maior de mulheres corroborando as informações. A título ilustrativo do padrão que Boaventura usa nas suas respostas, reproduzimos alguns trechos da declaração dada por Harvey Weinstein, em resposta às acusações de assédio sexual: I came of age in the 60's and 70's, when all the rules about behavior and workplaces were different. That was the culture then. I have since learned it's not an excuse, in the office - or out of it. To anyone. I realized some time ago that I needed to be a better person and my interactions with the people I work with have changed. I appreciate the way I've behaved with colleagues in the past has caused a lot of pain, and I sincerely apologize for it.

Em vez de uma análise do seu próprio privilégio, Boaventura apresenta uma leitura superficial e genérica do panorama social que resulta das transformações que ocorreram nas sociedades modernas em resultado das lutas feministas e dos desafios que temos hoje. No seu discurso, argumenta que muito do que não é aceitável hoje, era aceitável na época da qual veio. Acontece que, como assume, os direitos humanos, nomeadamente os direitos das mulheres, foram centrais na sociologia que desenvolveu e nos compromissos que assumiu com os movimentos sociais. É difícil aceitar como desculpa a ignorância ou a falta de noção, depois de tanto livro escrito; tanta palestra, tanta aula, tanta oficina, tanto fórum sobre o heteropatriarcado. O texto acaba por provar como Boaventura vem aprendendo seletivamente, e de acordo com seus interesses, as lições das lutas sociais feministas e por direitos humanos. Não aprendeu, por exemplo, o que significa responsabilização. Uma autocrítica vazia de responsabilização é apenas mais um passo de quem tem poder para controlar a narrativa. O movimento de direitos humanos, há anos, mostra que responsabilização significa assumir concretamente os atos cometidos, reconhecer a violência dos mesmos e os danos causados e reparar as vítimas. O terceiro conjunto de perguntas é novamente dirigido a Boaventura: Os atos inapropriados, que atribui à cultura, e não a si mesmo, foram cometidos contra quem? Dizem respeito a que tipo de situações: assédio moral ou assédio sexual ou ambos? Que medidas Boaventura tomou ou pretende tomar para reparar as vítimas dos seus atos lesivos? Ou está a falar apenas de atos inapropriados inofensivos que não trouxeram danos ou sofrimento a ninguém? Se não trouxeram danos ou sofrimento, porquê a necessidade de fazer a autocrítica? 

As respostas precisam ser concretas. Temos nossas histórias para exigir verdadeira responsabilização. Sabemos que o que sofremos não foram situações  inofensivas de um professor que ficou parado no tempo e não se apercebeu que o mundo andou. Estamos falando de um padrão sistemático de abusos que foi reproduzido com diferentes mulheres, em situações diversas. O último texto de Boaventura contradiz sua própria intenção, não avança um milímetro no reconhecimento das lutas feministas e dos direitos das mulheres, embora nele Boaventura se sinta surpreendentemente à vontade para ditar regras sobre como os procedimentos devem funcionar nos casos de assédio em que nunca foi vítima.

Sabemos que Boaventura conhece com profundidade como funcionam as relações de poder e as formas de dominação na sociedade. Compreende tão bem como funciona o patriarcado, que soube sempre colocá-lo ao seu serviço e de várias formas. Compreende tão bem a força das lutas sociais, que se valeu de mulheres dispostas a sacrificarem-se, porque denunciá-lo seria sempre aproveitado para detonar todas lutas que defendia publicamente e que são verdadeiramente importantes para nós. 

Mesmo que a desculpa da ignorância pudesse ser aceitável, lamentar o desconforto que causou nas vítimas é, no mínimo, insuficiente e é, do nosso ponto de vista, ofensivo. Não queremos falar do desconforto com o qual aprendemos desde sempre a lidar, que cansa mas não nos derrota. Queremos falar de um padrão de abuso normalizado, que ficou demasiado evidente para o podermos ignorar. Queremos falar de traumas silenciados; de carreiras interrompidas, estagnadas ou altamente sacrificadas; de perseguições resultantes de uma distribuição arbitrária de poder que o servia. Não pode existir justiça sem verdade sobre o que aconteceu, não pode haver absolvição sem qualquer esforço de reparação dos danos.  

Enquanto o CES não constituir a prometida comissão de investigação é Boaventura quem fica a ganhar, porque tem poder para controlar a narrativa. Enquanto ele prepara a sua comunicação de crise, sem reconhecer uma única falha concreta, as nossas carreiras e nossas vidas continuam abaladas, sem um fim à vista. A desigualdade continua a pesar sobre nós e as nossas cartas não são publicadas à mesma velocidade e no mesmo número de meios de comunicação social. Continuamos aqui a reviver os traumas e contamos apenas umas com as outras. A nossa cura ainda está por fazer.

 

Em 6 de junho de 2023.

 

 

Daniela Felix

Rep. Legal do Coletivo de Vítimas

Advogada Feminista 



(anexo)


NÃO É DIFAMAÇÃO, NEM É VINGANÇA. SEMPRE FOI ASSÉDIO: CARTA ABERTA AO CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Primeira carta do Coletivo de Vítimas de Boaventura de Sousa Santos 

17 de abril de 2023

 


[COLETIVO DE VÍTIMAS CES-UC/PT] 2a CARTA ABERTA

 [REPLICANDO A ÍNTEGRA AQUI]

2a. CARTA ABERTA DO COLETIVO DE MULHERES VÍTIMAS DE ASSÉDIOS, EM RESPOSTA AOS ARGUMENTOS APRESENTADOS POR BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS EM SUA DEFESA PÚBLICA


EXPOR A VULNERABILIDADE DE QUEM ACUSA NÃO CONSTITUI PROVA DE INOCÊNCIA.

 

Apresentamo-nos como um coletivo de mulheres que sofreu diferentes tipos de violência, resultante do padrão de abuso de poder naturalizado nas equipes de trabalho lideradas por Boaventura de Sousa Santos e percebido como inevitável pelas pessoas que ocuparam lugares de autoridade no CES durante muitos anos [anexamos a nossa Carta inicial].

O nosso coletivo está focado em pressionar a constituição de uma comissão centrada na proteção das vítimas e não na defesa dos agressores. A necessária investigação dos casos tem que assegurar um espaço em que as vítimas possam testemunhar sem medo de retaliações. Sabemos que o poder está desigualmente distribuído e é por isso que muitas mulheres são silenciadas. 

A resposta que Boaventura de Sousa Santos fez circular em reação às acusações da ativista indígena Mapuche Moira Millan (a que a própria também já respondeu - https://www.instagram.com/p/Crbt78YPTZJ/?img_index=1) vem ao encontro de parte das nossas preocupações. Esclarecemos, desde já, que não conhecemos e, até ao momento, nunca contatamos a ativista em questão. Levamos, no entanto, muito a sério a sua história.

Se toda a crítica tem direito a resposta e toda a acusação tem direito a defesa, é preciso romper com o pacto acadêmico de produção de verdade assente em hierarquias que atribuem ao lado mais forte o poder de definir o que é racional e o que é irracional, o que é provável e o que é improvável, o que é verdade e o que é mentira e quais são as perguntas que interessa fazer e sobretudo responder.

Na narrativa que assume como prova de inocência, Boaventura usa uma lógica de produção de verdade que reproduz problemas estruturais da academia: o professor catedrático escolhe a quem quer responder e ao que quer responder; define os termos do debate; desclassifica a vítima e assume que a sua palavra tem mais valor. 

Na cartilha de defesa dos abusadores encontra-se o recurso a evidências da cordialidade ou até da simpatia das mulheres após os comportamentos abusivos traumáticos que relatam. Ainda que toda a troca de e-mails que alegadamente prova uma continuidade nas relações entre Moira Millá e Boaventura fosse verdadeira (o que Moira Millán desmente), isso não produz prova de inexistência de abuso. 

É comum as mulheres sofrerem abuso e ainda se verem na obrigação de ser bem-educadas com o agressor. Todas sabemos, porque também fomos educadas a silenciar o que sentimos para evitar o desconforto geral, seja no jantar de Natal, seja na reunião de trabalho. Falhar essa regra, resulta em classificações bem conhecidas pelo patriarcado e pelas mulheres que o contestam: insubordinada, conflituosa, difícil, emocional, histérica, louca, desesperada, egoísta. 

São tantas as razões possíveis para manter a cordialidade, que só podemos dar exemplos: abusadores são manipuladores e podem fazer passar por insensibilidade e falta de empatia aquilo que foi uma rejeição do abuso; a culpa que as mulheres historicamente carregam faz com que muitas vezes questionem o que disseram, o que vestiram, como se movimentaram antes de conseguirem chamar violência ao que viveram; o poder de difamação do abusador é exponencialmente superior ao poder da vítima para denunciar; abusadores podem ser líderes de projetos e causas que as vítimas veem como mais importante do que a sua condição individual de sofrimento. 

No final da sua resposta, Boaventura Sousa Santos afirma “não posso aceitar que me façam acusações falsas como os factos bem demonstram”, mas os fatos apresentados por ele só podem ser entendidos como prova de inocência por quem não tenha qualquer ideia do que é sofrer assédio numa sociedade que soube sempre proteger melhor os agressores do que as vítimas. 

“Gostaria de não ter que avançar por meios jurídicos para resolver esta questão” é o tipo de formulação que serve em tantas situações e tão bem reconhecemos: a ameaça em tom suave, condescendente e patriarcal. Moira sabe que se não desistir, a guerra vai ser dura e Boaventura espera que a ameaça seja suficiente. Habituou-se na vida a que assim fosse. 

Para começar, Boaventura assume que as pichações que surgiram nas paredes de Coimbra com acusações de violência sexual se referiam à agressão sobre Moira. Todas sabemos que não é verdade. O caso mais conhecido era o abuso sexual exercido sobre a atual deputada brasileira Isabella Gonçalves, na altura uma jovem estudante de doutoramento no CES. Boaventura passa assim uma borracha sobre esse caso, como se nunca tivesse existido e não houvesse uma denúncia real. 

Sabemos que existiu. Mas Boaventura está habituado a definir quais são as perguntas e os casos relevantes, assim como as interlocutoras válidas e as inválidas, porque é esse o poder que a academia atribuiu a um professor catedrático e é esse sistema de validação que tem que ser questionado. 

Boaventura assume como prova de inexistência de assédio o fato de a sua casa não ter um sistema de segurança, como Moira afirma. Acontece que, em Portugal, é comum os prédios, que raramente têm porteiros, serem protegidos por uma porta comum de acesso aos moradores, que pode ser aberta por fora com recurso a um código ou uma chave. Para sair, nada disso é necessário, mas, para quem perceba alguma coisa de interculturalidade ou simplesmente já se tenha sentido insegura em lugares onde não conhece as regras, é fácil compreender como aquelas portas possam ser entendidas como sistema de segurança para quem vem de um lugar muito diferente. 

Insistimos que todas estas acusações devem ser investigadas e sabemos que os acusados têm direito a defesa, mas essa não pode assentar nas mesmas regras que fizeram calar-nos tanto tempo. Os abusadores não podem escolher as perguntas a que respondem e não têm o direito de selecionar e (des)classificar as vítimas. 

Boaventura mostrou, ao procurar defender-se, que conhece bem as regras que protegem o patriarcado e que sabe usá-las. Não nos convenceu. Enviamos daqui uma mensagem de solidariedade à Moira Millán: nós acreditamos, porque nós reconhecemos o padrão. 

 

 

Por fim, recorda-se que o e-mail querocontarminhahistoriaem23@gmail.com segue à disposição a todas que foram afetadas pelas práticas abusivas de Boaventura de Sousa Santos e precisam de um espaço seguro para partilhar suas histórias.

 

Do Brasil para Portugal, 27 de abril de 2023.

 

 

Daniela Felix

Rep. Legal do Coletivo de Vítimas

Advogada Feminista